Texto assinado por
António de Cértima, publicado no n.º 115
da revista ABC, de 28/09/1922 – Ilustração de Martins Barata
António de Cértima (Oiã 1894 – Tondela 1983), foi cônsul em
Dakar e em Sevilha
Nome de baptismo, António Augusto Gomes Cruzeiro
Maria Dolorosa
(RETRATO DE MULHER EM SEDA CRUA)
Falar dela a esta hora fulva e sob
este céu ardente, copiado das páginas reverberantes de «Il Fuoco», é mal
pronunciar, simplesmente, o alfabeto das suas frivolidades: as suas vinte e
cinco «Tailleurs» e os seus vinte e cinco anos representados em outros tantos
«batons» e bistres – idioma de perfumes e elegâncias em que ela nacionaliza as
suas atitudes. Por isso, a despeito dos magnetismos cerúleos com que a evoco…;
a despeito da febre de meus nervos de Outono onde ela se atulipa com passos
rítmicos de folha seca, eu apenas sei repetir, aqui, aquela fotografia
contorsiante em que uma vez a revelei sobre a seda crespa de minha
sensibilidade – uma seda crua, com relevos neuróticos, de onde a Duse cortou os
seus vestidos…
………….
- La
«Douleureuse»! A sua vida é um livro mas um livro raro, com páginas de Wilde e
Soror Mariana, sem «vient de paraitre» nem editor: é um livro por editar. A
capa deste livro, «brochée» por dentro a inéditos de Camilo e folhas aliciantes
de begónia, é, à nipónica, de um tecido original, com ramagens berrantes de
paixão… o tecido do seu corpo – tapeçaria plástica dos tecidos das anatomias
requintadas de Paris. O seu corpo é, pois, uma capa rara com um desenho a
sanguínea – a sua boca, tirada em papel «couché», o «couché» da sua beleza.
António
Soares deformou-a para a capa de uma edição plagiada com talento: a «Leviana»
de António Ferro. Mas ainda assim a sua boca não se perdeu cm o roubo de tintas
do pintor. Continua posta no seu corpo, sortílega, inatingível, suprema, como
precioso ex-libris de fascinação a etiquetar toda a sua vida – esse livro cujas
folhas intactas, por abrir, eu rasgo agora delicadamente com o corta-papel da
minha amizade.
Tenho aqui um maço de
cartas-programa, formato teatral, bilhetes, pensamentos, retratos, e alguns
dos seus artigos inéditos, destinados aos jornais onde colabora, - enfim, toda
uma argamassa de jornalismo e arte em que ela se tem publicado para mim em
folhetins, no folhetim branco do seu corpo! E agora, como em todos os
intervalos da minha febre, como sempre, eu, encostado na «maple» doce da sua
lembrança, leio-a toda nesta biblioteca com que tem guarnecido, com os seus
nervos e com os seus dedos melodiosos, as estantes literárias de meu coração de
moço. E nesta leitura vai uma tarefa emotiva e contumaz: ando a ver se a foco
na objectiva da minha nevrose, a ver se a fixo como quero na minha estesia a
fim de a resumir numa epígrafe vibrátil e única – essa epígrafe em que ela
viaja pelo mundo, laconicamente, sinteticamente, sem comentários e sem
programas, muito senhora de si e de suas tendências singulares, como uma grande
página esguia, sem texto, que fosse submetida à censura de Deus.
Maria
Dolorosa, é assim a mulher «hors-programme». Poucos a compreendem visto que
toda a gente vem para o tablado onde ela passa como um meteoro ardente, a
faulhar de arte, a horas certas – as horas do censo comum – e ela, supremamente
egoísta e aristocraticamente «aparte», vem sempre fora de horas.
A vida é hoje
um enxundioso monopólio de burgueses; os seus sentimentos, as suas paixões são
outras tantas figuras que o preconceito – o grande novo-rico – mandou gravar
num medalhão servil, em barro das Caldas – as caldas da moral! Ora, Maria
Dolorosa, maquilhada de uma independência «raffinée» tem vindo pela vida fora
lendo esse medalhão no anverso para fugir ao horror da vulgaridade, e de aqui
os seus dois escandalosos processos, escandalosos para os seus leitores
ignorantes: ela fez do Amor um meio e da Dor um fim! Amorosa e santa desta
maneira, tem-se enchido de lágrimas com que escreve a negro o seu drama, esse
intenso drama «só para raros» que o Hamlet da sua boca teima em fazer
representar a sério mergulhando os floretes do seu «charme» no peito dos
espectadores…
Maria Dolorosa é um livro raro, meus
senhores – o meu melhor livro do século XX, aquele em que trabalha
pacientemente com a laboriosa pertinácia de um construtor de séculos.
Ela ficará, portanto, sendo um
século – o século do seu corpo e da sua boca imortal – fechado com requinte, e
a fechos de prata, dentro de um livro – a sua vida- e que eu ainda não
publiquei por não ter acertado com o título… o título do seu beijo!
ANTÓNIO DE CÉRTIMA
P.S. – Chega-me a notícia de que Maria Dolorosa acaba de
casar – isto é, encheu de gralhas o livro da sua vida. Ficará uma edição
errada: tentando o público pela capa mas com as linhas do texto desconjuntadas
pelo dedo ignominioso do marido…
A.
de C.
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O livro de que se fala no texto, com capa de António Soares |
Sobre LEVIANA de António Ferro aqui
Sobre o Mestre António Soares, aqui