quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Wassabi...


Desabafo de Édipo



       ÉDIPO A 451º FAHRENHEIT

            Já lá vão uns vinte anos.
            O meu pai só me dava o dinheiro dos transportes para o Liceu. Quando chovia. Porque o Liceu ficava a três quilómetros de casa e se o tempo estava bom ou assim-assim, eu ia a pé.
             Claro que quando chovia, também ia.. o dinheiro para o eléctrico tinha outras perspectivas mais úteis de investimento, na minha maneira de ver as coisas.
            Não vou agora explicar o meu pai. Há coisas mais importantes que quero contar. Mas era assim. Arrumava-me a pasta, fazia de explicador obrigatório e até de barbeiro.
            Tinha uma mãe que estava casada com ele há mais de vinte anos e portanto já não era gente, e uma avó.
            A avó era uma mulher das arábias. Aos noventa anos foi a atropelada por um jipe e, após um mês de hospital, já saía novamente sozinha para onde lhe apetecia.
            A casa da avó ficava a dois quilómetros da casa dos meus pais, a acreditar nas revelações da agrimensura. Na realidade, vivia noutro mundo.
            O Pátio da Cabrinha ainda existe mas já não é o que era. Nesses tempos ainda não havia a ponte. Nem a Avenida de Ceuta. Estava separada da cidade por um deserto limitado por aquele incrível caminho de ferro que atravessa Alcântara.
            A casa ficava num bloco magnífico. Uma série de casas iguais que trepavam por uma bruta rocha, com filas de celhas de lavar a roupa na base e montes de escadinhas de cimento a dar acesso.
            A minha avó morava numas águas furtadas, no cimo da rocha. E eu vinha da cidade, passava a linha de comboio, atravessava o deserto que separava o mundo dela do meu, subia uma escadaria de cimento – trinta e dois degraus por onde em miúdo caíra aos rebolões – e chegava à base da rocha habitada depois de contornar poças de água cinzento-espumaçada das celhas. Subia quatro lanços de madeira carcomida e chegava lá acima.
            As visitas eram egoístas. A avó enfiava-me sempre dinheiro nas algibeiras quando saía e filhoses ou bolos caseiros quando chegava. E com a minha avó morava um primo.
            Esse primo era o orgulho e a desconfiança da família. Alto, elegante e simpático. Agente técnico de electricidade, o que representava o top intelectual da família. E solteiro!
            Não mostrava interesse em casar e tinha livros. Passava o tempo a ler.
            E, Deus seja louvado, emprestava-me livros.
            Foi assim que, aos dez anos, me iniciei na ficção científica.
            Descia as escadas com filhós no estômago, dinheiro nas algibeiras e três ou quatro livros mágicos debaixo do braço.
            Ao chegar ao deserto, começava a andar e a ler.
            Naquela terra de ninguém, não chocava nada à concepção que tinha do mundo nessa altura, começar a ler um livro editado por cães que discutiam a hipótese duma anterior civilização lendária dum ser chamado homem. Ou entrar no século vinte e seis e acompanhar um magnate que planeia um crime numa sociedade em que os políticos são telepatas.
             Só houve um livro que me chocou. Foi quando travei conhecimento com o bombeiro Montag que andava a queimar livros proibidos por excesso de imaginação. Com essa é que o Ray Bradbury me abalou. Uma sociedade onde a lei impunha à população o mesmo que o meu pai a mim. Onde era proibido Nosperatu, O Pai Natal, a Morte Vermelha, Ambrose Bierce e Walt Disney.
             «451.º Fahrenheit – a temperatura a que o livro arde e se consome».
             A ideia criou-me um choque e uma angústia só comparável quando, aos seis anos, ouvira na rádio a adaptação do capuchinho vermelho.
             Não me importava nada de viver num mundo cujos lideres fossem seleccionados por psicotestes dum computador, ou invadido por homenzinhos verdes a duas dimensões que cuimavam e só queriam chatear a malta. Mas, com aquela polícia, com aquele cão mecânico que detectava sentimento de culpa pelo odor da transpiração e que atacava com um agulhão envenenado, não.
             Ambicionava a vinda de todos os cenários que lia. Governo Mundial com conselheiros psicossociólogos, passeios em barcos de areia nos canais de Marte a colher os frutos de cristal… Suportaria a luta pela sobrevivência num mundo pós-Grande-Estoiro, evitando os lagos fosforescentes à noite e lutando com mantas selvagens. Mas aquela sociedade não.
             Porque aquilo conhecia eu. Viver num mundo onde não houvesse nenhuma chance de encontrar uma avó a fritar filhós num sótão, com um primo que me emprestava Sturgeon , Simak ou Frederic Brown…
             Cresci.
             Quando chegamos á lua, estava eu em Luanda. Ouvi pela rádio o maravilhoso «The Eagle has landed» e desatei a rir de contente. Olhei para o quarto crescente grande, branco e puro tentando vê-los e sentindo a maravilhosa liberdade de ver o meu mundo estendido para as estrelas.
             Apreciei a maravilhosa ironia da rotina dos passeios Apolo. E piscava o olho às sucessivas aparições no mundo real dos meus velhos amigos dos livros mágicos da terra de ninguém. O laser, a engenharia genética, academias de parapsicologia…
             Entretanto, a terra de ninguém macadamizou-se. Os psicólogos (sem a educação anti Aristotélica que Van Vogt preconizava para a sua raça eleita) analisavam a educação, inventavam a  pedagogia, e descobriam nove factores contra quatro a favor da história da Branca de Neve.
             E os livros mágicos foram rareando, sem que ninguém os soubesse aproveitar (não ligues, Kubrick, isto não é contigo). Só certas formas de histórias aos quadradinhos… que começavam a ser estudadas, analisadas marxisticamente e higienizadas.
             E quando dou por mim, estou a viver num mundo de adultos. Aparentemente ao nível deles. Mas eles não gostam da imaginação. É subversiva ou reaccionária ou outra coisa qualquer. Mas é etiquetável seja lá como for. E distribuída racionalmente.
             O que é mais discreto mas tão eficiente como um lança-chamas dos colegas de Montag.
             E começo a sentir vontade de me juntar às bruxas de Shakespeare e aos fantasmas de Bierce e Põe à volta dum caldeirão fumegante e nauseabundo num mundo só sonhado, num canal de Marte, a fazer encantamentos com agulhas e bonecos de cera para mandar todos esses senhores anticépticos para as chamas do inferno.
             Mas é cada vez mais difícil sonhar. E eles já apagaram o inferno.

A. TOMÉ
 
Artigo da Revista: VISÃO - Para uma nova Banda Desenhada Portuguesa
Número 1, de 1 de Abril de 1975


terça-feira, 20 de novembro de 2012

Dito 42


Em formulação brasileira:

Estar o diabo feito vaca à porta do açougue


Aportuguesado:

Estar o diabo feito vaca à porta da leiteira

domingo, 18 de novembro de 2012

O Candelabro Sagrado


 
          …
         Rabi Eliezer, o «Puro e Sereno», foi o primeiro a tranquilizar-se, fazendo afectuosamente uma festa no rosto da criança.
          - Tu és um valente – disse, debruçando-se para o pequeno. - Tinha a tua mão na minha e não a senti estremecer. Queres que continuemos a conversar? Ainda não sabes onde vamos nem porque estamos a pé esta noite.
          - Conta… - murmurou o rapazito, com ligeiro tom de prece na voz.
          - Como te disse e te deves recordar, Tito, o maldito, tinha levado os nossos objectos sagrados para Roma e teve a vaidade de os mostrar, em espectáculo, a toda a cidade. Mais tarde, os imperadores romanos que lhe sucederam, depositaram a nossa menorah com as outras relíquias de Schelomo num edfício a que chamaram Templo da Paz. Frase insensata! Como se a paz pudesse durar e ter asilo neste mundo belicoso! Mas o Eterno não permite que aquilo de ornamento em sua própria casa, fique num templo estrangeiro; uma noite, Ele ateou um incêndio que consumiu o monumento, as estátuas e as riquezas que continha. Apenas o nosso candelabro escapou às chamas devoradoras. Foi uma nova prova de que nem o fogo, nem a mão criminosa dos homens podem nada sobre Ele. Deus adverte-os assim de que devem pôr os objectos sagrados no lugar santo onde os veneramos, unicamente pela sua santidade e não por causa do seu valor. Mas os loucos compreendem as advertências do céu, os corações endurecidos obedecem à razão? …
          Rabi Eliezer suspirou e prosseguiu:
          - … Eles agarraram no nosso candelabro sagrado e levaram-no, uma segunda vez, para outra casa do imperador: e como ele dormia lá, no fundo de um quarto bem fechado, pensaram em tê-lo ali guardado eternamente. Mas um bandido encontra sempre outro bandido que o ataca, e aquilo que se conquista pela violência perde-se pela violência. Cartago atacou Roma, como Roma assaltara Jeruscholajim. Pilharam-na como ela nos espoliara a nós; os seus santuários foram ultrajados como haviam sido os nossos. Mas os bandidos que tu viste lá em baixo, roubaram-nos também o nosso bem, o nosso divino candelabro, e os seus carros, que vão diante de nós, conduzem o que os nossos corações mais amam. Amanhã, embarcam-no e levam-no para outros céus, longe dos nossos olhos desolados; a sua luz nunca mais nos iluminará, a nós, que já somos velhos! Nós seguimos a menorah que nos deixa, como se acompanha na sua última viagem os despojos de um ente querido, para lhe testemunharmos a nossa afeição. Perdemos o que possuímos de mais sagrado: compreendes agora a tristeza da nossa missão?
          …

          
Excerto de:
            O CANDELABRO SAGRADO
            (O candelabro enterrado – 1937)
            Autor: Stefan Zweig (1881 – 1942)
            Tradução de Alice Ogando
            Livraria Civilização – Editora
            3ª edição, 1947
 
Triunfo de Tito, detalhe do Arco de Tito. Roma
 
Imagem daqui





sábado, 17 de novembro de 2012

Menorah


Reconstituição da Menorah original do Templo - (Sete braços/lamparinas)
 

 

Hanukkah menorah também denominado Hanukkiah, usado na festa judia do Hanukkah
(Nove braços/lamparinas, em que a do centro não está alinhada com as outras)


Imagem daqui
 


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Besouros, e coisas assim


           Ontem, enquanto via as imagens do que se passava em frente do parlamento, até a mim me doeu! Uma linha de polícias fazia barreira nas escadas, evitando que uma turba as subisse, enquanto aguentava os impactos de pedras da calçada e todo o tipo de objectos arremessáveis que iam pejando os degraus a seus pés. Lembrei-me do efeito que tem o impacto de um pequeno besouro na viseira de um capacete. Quando se passeia de mota, mesmo a velocidades baixas como sejam uns cinquenta ou sessenta à hora, qualquer choque de um pequeno “voador”, no capacete ou na viseira, provoca um estalo assustador; isto quando estamos com sorte, porque se o impacto se dá no rosto ou no pescoço, até se vê estrelas!
          Hoje, no fim da intervenção que o presidente da república fez na conferência da COTEC, “Mar de Negócios”, foi abordado por uma quantidade de jornalistas, todos na ânsia de o fazer falar, ligados às redacções por fios e feixes de ondas, sem capacete, sem tempo e sem uma data de coisas, boa parte deles, que se as tivessem até seriam bons jornalistas, o bom senso por ex.
          Por um momento, veio-me à ideia a cena de Caco Silva num aperto de campanha eleitoral, empunhando o microfone que um jornalista lhe havia franqueado, esgueirando-se por baixo das mesas de um café e a relatar o que fazia, na terceira pessoa. Por outro momento, tive a esperança de que quando lhe perguntaram se não achava que a polícia tinha agido (ontem em S. Bento) com excesso de força, ele retorquisse:
          - A senhora nunca andou de mota?

          Estou confiante que isto vai melhorar, mas tenho a certeza que para que isso aconteça, será preciso que um certo discurso, de uma certa esquerda, parvo, libertinário, desconexo, etc., seja deixado de vez. Quando os escaravelhos forem tratados como escaravelhos, as pedras como pedras e as pessoas como pessoas, isto vai melhorar.

Não me perguntes porquê


 
          Revista VISÃO ( Para uma nova banda desenhada portuguesa)
          n.º 1 - 1 de Abril de 1975

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Para mudar de assunto



          Sr. L,
          não permito que seja para mim
          o zahir do Borges.
          Agora tinha em mente
          uma representação da sua mitose;
          uma transformação da sua fronte
          em estilo Francis Bacon;
          e outra em que lhe poria
          a cabeleira do Andy Warhol
          e um namorado preto –
          - o Basquiat, claro!
          Depois, representá-lo num altar

          pagão, a oficiar um ritual vodu
          e a aspergir tudo com bourbon…
          A seguir, desenhar um grafismo
          da progressão geométrica
          dos quadrados;
          mostrar quantos seríamos
          se todos deixassem
          dois em seu lugar!
          Deslargue-me.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Pluralidade




TPC:
Pluralidade Democracia ditada Pluralidade Necessidades são direitos Pluralidade Minoria significativa Pluralidade Verdade única Pluralidade Partido director Pluralidade Pluralidade Pluralidade.

Escrever Mil vezes, sejam felizes.

Mostrar AMANHÃ

Super Pop



                    Super Pop Louçã

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Visão (BD)


 

          Em 1985, ainda a feira do livro do Porto era na Boavista, lá comprei os doze primeiros números encadernados da revista de “BD” portuguesa: VISÃO. Na altura era para mim uma novidade; a publicação remontava a 1975, quando eu era um puto da província com dez anos. Iam portanto decorridos outros dez anos, desde que a revista aparecera, e ficou logo muito claro que o progresso do país tinha sido, entretanto, enorme. Tudo parecia muito parvo, como ainda me parece o clip “olha o robot” da Lena D’água!
          O primeiro número data de 1 de Abril de 1975, saía nos dias 1 e 15 de cada mês e custava 20 escudos.
          "VISÃO – PARA UMA NOVA BANDA DESENHADA PORTUGUESA – Edições EDIBANDA", dizia contar com a participação crítica dos leitores: Contamos contigo – a tua visão é fundamental.
          Vou passar a trazer umas pranchas e páginas inteiras de Loucura, Loucura, própria do pós-revolução de Abril.

 

sábado, 3 de novembro de 2012

O Aleph


… Não se dirá melhor o que ali se disse. Além do mais (e talvez isto seja o essencial das minhas reflexões), o tempo, que despoja as fortalezas, enriquece os versos. O de Zuhair, quando este o compôs na Arábia, serviu para confrontar duas imagens, a do velho camelo e a do destino; repetido agora, serve para recordar Zuhair e para confundir os nossos pesares com os daquele árabe morto. Dois termos tinha a imagem e hoje tem quatro. O tempo amplia o âmbito dos versos e sei de alguns que, como a música, são tudo para todos os homens. Assim, atormentado há anos em Marrakesh com saudades de Córdova, comprazia-me em repetir a apóstrofe que Abdurrahman dirigiu, nos jardins de Ruzafa, a uma palmeira:

 
                   Tu também és, ó palmeira!,
                   Estrangeira neste solo…

 
        Singular benefício da poesia: palavras escritas por um rei que desejava o Oriente serviram-me a mim, desterrado na África, para a minha nostalgia de Espanha.
          …
Excerto de “A BUSCA DE AVERRÓIS”
 
 
 
Editorial Estampa - Ficções, n.º7
 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Fiéis

 
 
 

Pitões das Júnias

 
               Nada mais nostálgico do que um pequeno cemitério de um mosteiro fechado há muito tempo, morto também ele – o cemitério – deixado na paz de entre muros altos, mesmo com as espreitadelas tímidas dos vivos, pelo portão de ferro, ou do alto da encosta.