sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Mordaça



           O fio que liga a minha casa ao mundo está no chão. Dei por isso na madrugada de ontem quando precisei do telefone e vi que estava morto; era como se estivesse ligado à corda da roupa. Uso tão pouco aquele aparelho que fiquei intrigado como tive vontade de lhe deitar a mão. Provavelmente foi ele que chamou por mim! Tinha estado mau tempo a noite toda, agora da janela vejo o fio preto a traçar uma parábola profunda, a confundir-se com os arames da ramada e a mergulhar no talho das pencas.
            O tempo acalmou, adivinha-se um dia frio. Da janela da copa avisto o fio na sua trajectória ondulante e descendente enquanto uso o telemóvel para contactar a minha operadora de comunicações, que não é a proprietária daquele fio. Atende-me uma voz gravada, dá-me as boas vindas e desfia as opções que tenho em troca de premir as teclas que me indica; já estou habituado.
            Tenho a minha cadelinha nova na cova da mão esquerda encostada ao peito, dorme. Vou ouvindo e marcando números, depois espero, espero, tenho música de guitarras ao longe interrompida a espaços curtos pela voz gravada que me diz que estou em fila de espera e serei atendido logo que possível. Faço um afago com o queixo no dorso da cachorrinha, é real. A voz diz-me que poderei ser contactado pela operadora num prazo de 48 horas se premir “um”, não primo nada, continuo à espera. Quarenta e oito horas no tempo da televisão digital terrestre, penso eu nem sei a propósito de quê.
            A empresa que me fornece o serviço de telefone fixo e de Internet pertence a um grupo de empresas a quem em tempos comprei a minha bicicleta, compramos lá quase toda a mercearia cá para casa, também vendem seguros para automóveis e hei-de ver se têm coleiras para cãezinhos tão pequeninos.
            Sou apanhado desprevenido por uma voz feminina em directo; cumprimenta-me, diz-me o nome e pergunta em que me pode ajudar. Esqueço de imediato o nome e explico que estou sem telefone nem Internet e que vejo o fio caído. Pergunta com quem está a falar e pelo número de telefone ou o número de contribuinte. Identifico-me como José Moura Pereira, dou o número de telefone e sinto aquela coisa no peito, vou ser tratado por Sr. José… Não, trata-me por Sr. José Pereira, desanuvio, pede para que aguarde um pouco, ouço teclar, diz que é conhecida uma avaria na minha zona, que está a ser tratada. Adivinho que não anotou em lado nenhum a existência de fios caídos
            Imagino que pegou numa folhinha de papel, um documento interno do sistema da qualidade, modelo n.º não sei quantos, intitulado recepção de reclamação ou de avaria ou coisa que o valha, preencheu algures a hora, escreveu em local próprio o meu nome, fez uma cruzinha à frente de “n.º de telefone” e depois escreveu-o… Mas sei que tudo se passou no teclado, que um dia um gráfico dirá que o tempo médio de resolução de uma avaria é inferior a oito horas, que os objectivos para o semestre seguinte contemplarão uma redução de alguns minutos nesse tempo. Sei também que a rapariga com quem falei pode estar em qualquer parte do mundo, que vou ficar vários dias sem telefone nem Internet e que isso só preocupa as pessoas cá de casa.


P.S. Nem chegou a dois dias sem internet, mesmo com fios caídos!

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Maria Vitória

Depois da nota de “sem”, tomem lá uma de mil.
De mil, mesmo! Gargalhudos, mesmo assim, mil.
De notar que é um banco teatralizado, nosso, além de outros pormenores muito engraçados.
Teatro Maria Vitória
Alto e Pára o Baile! Setembro de 1977


quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Ocorrência v

Ocupou os minutos seguintes com formalidades processuais, pôs o secretário a ler para a sala uma peça que lhe daria tempo a voltar a si, concentrou-se a olhar para as próprias mãos impecáveis, dedos longos, pele firme e macia, unhas cuidadas, tinha voltado a si. Já lhe rolava outra vez o olhar pela sala. A comunicação social quase não se via, iria aumentar já na próxima audiência. Aquela massa de gente tão heterogénea era tão intrigante quanto o pouco ruido que emitia; nem tosse nem bichanar nem o bulício de rabos nos bancos, trajes estranhos, tão diversos, não era costume ver-se pessoas tão velhas nos julgamentos.
Voltado a si, foi traído pelos próprios pensamentos. Sem saber de onde, a cabeça tinha desencantado a palavra encarnação e se verbalizasse o que sentia teria dito, encarnei!
Sentiu-se num vórtice.
Como tinha permitido que aquele processo chegasse a tribunal? Já tinha mandado às urtigas questões bem mais consistentes.
Recusou uma terceira vertigem, deu por encerrada a cessão e marcou a próxima para dali a um mês; questões de agenda.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Ocorrência iv


Agapito Silvério, o juiz presidente, demorou algum tempo até perceber que a maior parte do que sentia era autocomiseração. Tinha tido um percurso de vida de sucesso, foi um bom estudante sem se esforçar muito, cedo foi o que queria ser, foi advogado enquanto lhe deu gozo e agora era juiz e gostava. Ganhava bem, nunca tinha tido uma relação estável e fazia tudo para as evitar, trocava de carro por impulso, achava-se bonito…
Agapito Silvério, aquele nome, funcionou desde sempre como uma pedra no sapato mas ao mesmo tempo como o seu cartão-de-visita; incontornável. Até os professores mudavam o tom de voz quando o pronunciavam. Enquanto advogado habituou-se a reconhecer o peso das palavras e aprendeu a força da peculiaridade do seu nome.
Agora, naquela sala cheia e insuportavelmente bafienta, sentiu-se esmagado pela maior solidão, o sentimento mais forte que já experimentara. Certo de que eram influências da leitura das peças do processo, viu-se num momento no lugar do Cristo. Um estranho momento fora do tempo em que toda uma eternidade coube no curto gesto de voltar a pegar no pedacito de pão. Lá do alto, deixou cair o olhar sobre aquela multidão e percebeu que era dele que todos esperavam alguma coisa, apesar de tudo.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Global chair

     Cadeira global (*)


     (*) A cadeira global é construida a partir de duas paletes de madeira usadas. A cadeira será tanto mais global quanto mais viajadas tiverem sido as paletes

     Mais fotos aqui.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Cromos 4

     Sociedade Industrial dos Tabacos de Angola, Lda.
     Anos 30 do Séc. XX ?
     Actividades desportivas e seus praticantes



sábado, 8 de outubro de 2011

Ocorrência iii

O presidente do colectivo contava com uma grande prelecção e ficou claramente desnorteado quando ouviu o delegado do ministério público, numa só frase pronunciada discretamente, sem gestos, sem modelação do tom de voz nem outras peias, simplesmente como que só a informar:
- O ministério público acompanha formalmente este processo, faz votos para que siga criteriosamente a tramitação legal e não contribuirá para o seu apodrecimento.
Houve um advogado da acusação que chegou a manifestar algum incómodo com aquelas palavras e que logo de seguida não se importou de ficar feliz por ninguém ter reparado nisso. Todos os outros advogados fizeram trejeitos indecifráveis, uns com os olhos, outros com a boca ou com o franzir da testa, em qualquer caso sem dignidade para registo.


sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Do arco da velha 5

Folheto promocional do AUSTIN EIGHT
20 páginas
Impresso em Birmingham - Inglaterra, por James Cond Limited
Maio, 1939






quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Adélia, de novo.

Adélia, uma fotografia de Adélia, sem mais, foi a a primeira publicação do meu blogue em 10 de Janeiro deste ano.
Hoje, depois de ler Adélia do Rui Rocha no DELITO DE OPINIÃO, um texto a que voltarei com certeza muitas vezes, não pude deixar de a trazer de novo.
É uma pequena escultura minha, com cerca de 26 cm de altura em argamassa calcária.







quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Ocorrência ii

Já o delegado do ministério público pedia a palavra há algum tempo quando o juiz presidente deu conta disso; tinha estado ocupado a roer um bocadinho de pão, baixo e duro, enquanto os olhos percorriam aleatoriamente as capas dos dossiês no cimo da imensa pilha que lhe servia de secretária. Levantou-se num salto, pousou num gesto reflexo o pão e com os curtos bracinhos caídos ao longo do corpo, baixou o olhar numa evidente reverência e disse com uma vozinha sumida:
- De direito do Sr. Doutor e para o bem deste tribunal, faça o favor, Sr. Doutor.
A sala continuava a encher e a atmosfera já tinha pouco de respirável, as paredes escorriam o ressoado, todos ccomiam ou já tinham comido um pouco de pão, havia uma espécie de malgas com vinho a passar de mão em mão, e apesar de tudo reinava o silêncio!

Dito 13

Quem ao longe vai casar, ou vai cego ou vai cegar.