O fio que liga a minha casa ao mundo está no chão. Dei por isso na madrugada de ontem quando precisei do telefone e vi que estava morto; era como se estivesse ligado à corda da roupa. Uso tão pouco aquele aparelho que fiquei intrigado como tive vontade de lhe deitar a mão. Provavelmente foi ele que chamou por mim! Tinha estado mau tempo a noite toda, agora da janela vejo o fio preto a traçar uma parábola profunda, a confundir-se com os arames da ramada e a mergulhar no talho das pencas.
O tempo acalmou, adivinha-se um dia frio. Da janela da copa avisto o fio na sua trajectória ondulante e descendente enquanto uso o telemóvel para contactar a minha operadora de comunicações, que não é a proprietária daquele fio. Atende-me uma voz gravada, dá-me as boas vindas e desfia as opções que tenho em troca de premir as teclas que me indica; já estou habituado.
Tenho a minha cadelinha nova na cova da mão esquerda encostada ao peito, dorme. Vou ouvindo e marcando números, depois espero, espero, tenho música de guitarras ao longe interrompida a espaços curtos pela voz gravada que me diz que estou em fila de espera e serei atendido logo que possível. Faço um afago com o queixo no dorso da cachorrinha, é real. A voz diz-me que poderei ser contactado pela operadora num prazo de 48 horas se premir “um”, não primo nada, continuo à espera. Quarenta e oito horas no tempo da televisão digital terrestre, penso eu nem sei a propósito de quê.
A empresa que me fornece o serviço de telefone fixo e de Internet pertence a um grupo de empresas a quem em tempos comprei a minha bicicleta, compramos lá quase toda a mercearia cá para casa, também vendem seguros para automóveis e hei-de ver se têm coleiras para cãezinhos tão pequeninos.
Sou apanhado desprevenido por uma voz feminina em directo; cumprimenta-me, diz-me o nome e pergunta em que me pode ajudar. Esqueço de imediato o nome e explico que estou sem telefone nem Internet e que vejo o fio caído. Pergunta com quem está a falar e pelo número de telefone ou o número de contribuinte. Identifico-me como José Moura Pereira, dou o número de telefone e sinto aquela coisa no peito, vou ser tratado por Sr. José… Não, trata-me por Sr. José Pereira, desanuvio, pede para que aguarde um pouco, ouço teclar, diz que é conhecida uma avaria na minha zona, que está a ser tratada. Adivinho que não anotou em lado nenhum a existência de fios caídos
Imagino que pegou numa folhinha de papel, um documento interno do sistema da qualidade, modelo n.º não sei quantos, intitulado recepção de reclamação ou de avaria ou coisa que o valha, preencheu algures a hora, escreveu em local próprio o meu nome, fez uma cruzinha à frente de “n.º de telefone” e depois escreveu-o… Mas sei que tudo se passou no teclado, que um dia um gráfico dirá que o tempo médio de resolução de uma avaria é inferior a oito horas, que os objectivos para o semestre seguinte contemplarão uma redução de alguns minutos nesse tempo. Sei também que a rapariga com quem falei pode estar em qualquer parte do mundo, que vou ficar vários dias sem telefone nem Internet e que isso só preocupa as pessoas cá de casa.
P.S. Nem chegou a dois dias sem internet, mesmo com fios caídos!
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