Manuel Ribeiro (1878 – 1941)
Escritor, romancista, neo-romântico, um dos da "geração de 70", foi o mais lido em Portugal durante a década de 20 do século passado, e deliberadamente esquecido a partir da década de 40, assunto que motivou investigação e originou tese de doutoramento.
A tísica
- Eh, ti Chico, bot’ arriba.
- Anh, grunhiu um vulto enroscado numa das camas do fundo lôbrego da enfermaria.
- Espichou uma lá em cima, vamos buscar o esquife.
A morta estava estendida no seu leito de ferro entre as camas muito brancas das outras doentes. Tinham afastado o biombo de que costumavam cercar os agonisantes, e sôbre a mesinha de cabeceira a irmã da caridade improvisára um pequeno altar com seu crucifixo entre dois castiçais acesos. A irmã resava ao lado da morta já vestida e as outras doentes espertadas cochichavam. Errava em toda a enfermaria um ar asfixiante de penitência e de terror, cheio desse mistério impressionanteque a algidez da morte espalha como uma cinza funebre sôbre as almas.
A irmã Angela, que sabia do meu amor pela pequenina tísica e sempre me afastara dela com a dureza feroz da sua castidade intransigente, tinha-me dito aquela tarde:
- Entro hoje de ronda, se quizer fique comigo para a velarmos.
Sabendo que não escaparia dessa noite, a irmã de caridade num intuito verdadeiramente mais cruel de que piedoso, em vez de me afastar, chamara-me para contemplar a agonia dolorosa da pobre rapariga.
E lembro-me ainda hoje, com terror, dessa lufada tràgica de desespero, de paroxismo febril, que agitou a minha sensibilidade delicada de rapaz, soluçante ao lado da pequena morta, enquanto a irmã Angela numa imobilidade de estatua, espelhava no seu rosto uma intima felicidade satisfeita por vêr mais uma alma largar para o mundo quimérico da sua crença.
Sempre bôa, carinhosa e docil para o doente, ela via-o partir quando curado, indiferente às suas efusivas manifestações de reconhecimento, ficando-lhe apenas a consciência do cumprimento dum dever imposto.
Mas era diante da morte que ela se regosijava. Através da sua crença cega, de fanática, eram almas que ela via estrebuchar no exodo final para os anjos e para Deus. Na ânsia de vê-las partir dava-lhes a beijar o crucifixo do seu grande rosário de contas brancas, onde elas se apegassem ao deixarem, suprema libertação, o miserável invólucro, residência temporária no pecado e no sofrimento. A tísica tinha esse rictus de escárneo que mostram as máscaras dos doentes cujas faces emagrecem muito. Os malares salientavam-se-lhe violentamente num tom de marfim velho, apagando-se no circulo roxo das olheiras profundas. Os olhos tinham-se-lhe fechado de per si. Posto que morta havia pouco, tinha adquirido já essa expressão indefinível que a gente vê nos cadáveres que a rigidez inteiriçou, os músculos caídos sem essa tensão que dá a palpitação da vida, as veias deprimidas onde não tumesce já o gorgulho rubrodo sangue, toda a passividade inerte da carne morta, flácida e mole como um trapo.
O rosto, muito pequeno, não tinha já a figuração quando animado e gazil, e os olhos lhe rejubilavam fulgores vívidos.
Uma maceração lívida de dor que cresta e padecimento que consome, dava-lhe um ar antigo de noviça que se mumificou nos ascetismos ardentes da fé.
E luz religiosa das velas bruxeleando ondulações de nave em lausperene, cercando-a duma atmosfera de recolhimento, imprimia-lhe a diafaneidade cerosa das santas, onde como que se vê, como que se palpa essa flutuação do pensamento em que as suas almas andavam vaporizadas.
Era assim que a irmã da caridade a estava vendo e era assim que eu a via, sugestionado pela convicção imperiosa e dominadora que irradiava da hospitaleira, cuja figura eu temia e respeitava na sua insexualidade entre divina e humana.
Parecia mais cumprida, ao longo do leito, o busto informe sob o grande roupão deselegante que a irmã na véspera talhára do seu lindo vestido de percal claro.
Tinham-lhe cortado o cabelo, e a pobrezinha ocultára-me êsse grande desgôsto que a irmã lhe fizera sofrer, metendo-lhe a tesoura na espessa gaforina das suas madeixas louras.
Havia três meses que havia chegado.
A entrada na enfermaria daquele bustosinho galante, que não parecia doente, impressionára com um sabor dôce de curiosidade a minha imaginação indiferente à miséria gemida e à dor arrastada por aqueles corredores do hospital.
Que o hospital era lindo.
Do lado norte, varandas cintavam o edifício donde a vista descortinava léguas de campina toda semeada de casinhas brancas dos montes.
Em baixo, as manchas verdes dos jardins, onde as nespereiras alargavam sombras espessas e limoeiros presos às muralhas brancas, como eras, lembravam ermos de retiro conventual.
Amámos-nos. O que é o amor nessas idades?
Eram os idílios futeis da meninice. Capelas de rosas brancas que se toucavam na sua cabecita loura, como halos de místicos noivados.
Tinham chegado os moços com o esquife.
Um dêles, aconchegando as sandálias da morta, pegou-lhe rudemente nos pés. Instintivamente, repeli o outro e tomei-a com todo o cuidado por debaixo dos braços, encostando-lhe a cabeça contra o meu peito. No esforço que fizemos ao levantá-la, a cabeça pendeu-lhe para trás, e através das pálpebras , contra a luz, eu vi num fiosito claro, como que um resto de vida, as córneas embaciadas dos seus olhos, onde se não esmaltavam já as radiosas alucinações da febre.
Colocámo-la como uma grande pétala branca dentro do esquife. Cobrimo-la com o pano negro de veludo. Depois os homens pegando nos braços da tumba puzeram-se a caminho, ao mesmo tempo que eu sentia em todo o meu ser êsse despedaçamento estrangulador das separações. A irmã Angelica colocára-se ao lado do féretro com uma vela acesa. E eu seguia os dois homens no seu passo rítmico ao longo dos corredores, vendo as suas sombras amplificarem-se nas paredes alvas. E sentia uma angustia desesperadora ao pensar que não era já nada naquele cadáver que êles levavam, que era agora deles, e uma espécie de ciume louco e de raiva impotente confrangia o meu coração diante daquele egoismo, da indiferença daquelas pequeninas mãos que se tinham erguido para mim em todas as suas crises de sofrimento da indolência do seu ser que fremira a tão delicadas sensibilidades e onde eu ainda via a condensação de todos os meus desejos e a alma que eu amara no seu corpo.
Era a materialidade do meu amor que eu ali procurava, a docilidade do seu espírito convergindo para mim em todas as suas voluntariedades.
Nas outras enfermarias percebiam-se êsses gemidos abafados da insónia, quando a alma erra pelas alucinações trágicas de nevrose. Sentia-se a agitação dos corpos minados pela doença, que não se revoltam e já não gritam, lassos, envolvendo os nervos numa bainha de indiferença.
Descemos a escadaria do andar nobre, demos a volta do claustro para onde abriam arcadas que recortavam no alto sectores de céu azul picado de estrêlas e desembocamos enfim no jardim todo cheio de sombra sob a grande solidão da noite fria.
O depósito era ao fundo num dos recantos do jardim, encostado às paredes da capela do hospital.
Um dos moços abriu uma cancela de ferro e depois a porta, saindo lá de dentro um bafio a cêra queimada e ar viciado. Sôbre uma banca, envolto numa toalha de linho, a tristeza lívida dum Cristo olhando para a terra com o desalento dos grandes desditosos, ao lado, a mesa das autópsias, esquifes empilhados e um rumor surdo dos limoeiros rapando nas rótulas das janelas. Cá fora a scintilação trémula das estrelas e o silêncio enchendo o grande vácuo da noite…
Manuel Ribeiro
Publicado em:
ABC – Lisboa, 16 de Novembro de 1922
Ano III – n.º 122