sexta-feira, 26 de outubro de 2012

não sou eu





          Desde Dezembro, antes do Natal que não faço nada. Piorei da minha doença, tive de ficar de cama durante um mês, numa inactividade completa. Levantei-me enfim, mas por alguns dias apenas, porque o frio me obrigou de novo a ficar na cama.
          Entretanto, pelo Adalberto, mandei comprar folhas soltas para escrever e para desenho. As folhas chegaram há dias. Eu estava a pé nessa altura… E logo me assaltou uma fúria imensa pelo desenho. Comecei, fiz alguma coisa mas tive de parar.
          Como eu desejaria nesta altura uma saúde de ferro só para poder desenhar à minha vontade, horas e horas sem descanso, até à exaustão! Em vez disso, porém, estou na cama e todo o meu labor se limita a desenhar no vácuo pelo pensamento que não pára, numa sucessão de imagens por vezes tão claras, tão nítidas, que é impossível que alguma coisa não fique em mim para dar fruto num futuro melhor.
          Oh! O que eu sonho de desenhos e de pinturas! E de que forma me ultrapasso e supero neste desenhar e pintar mental! É uma doidice deixar-me arrastar assim, consentir que de tal forma me empolgue a imagem aliada á ideia do que farei … Pois se eu sei que não sei nada! Se mais do que isso eu sei que não posso nada! Como suster, porém, a torrente que brota, que esguicha do meu cérebro livre de distracções por esta quietude de corpo em que estou?
          Em certos momentos, convicto da impossível altura a que pelo pensamento me guindei, fecho as comportas, ponho um tampão neste sonhar louco… Mas de que vale? Daí a nada tudo salta em estilhar; uma nova ideia entra a germinar, a roer… E não sou mais eu quem pensa: é alguém no ar, seguindo a ideia, que se dilata, cresce, atinge proporções descomunais, qual bola de neve rolando do cimo do monte. Entretanto, eu sei, bola de neve ou ideia terão fim idêntico: ou pelo caminho as despedaça um obstáculo imprevisto, ou acabarão seus dias no fundo do precipício onde as forças da natureza ou a realidade da vida as levou…
          Sei isto e no entanto continuo a pensar coisas fantásticas, todo nas nuvens, feliz, de uma felicidade de criança grande, para quem o desmoronar de todo um sonho não é mal maior nem desgraça tão forte que lhe roube a faculdade de pensar, de fantasiar de novo, e sempre mais alto.


                                                        Freamunde, 12 de Fevereiro de 1960
 
João Fernando Correia de Moura (26/0871931 – 18/06/1964)
Autor Freamundense
Prefácio de: José Carlos de Vasconcelos
Edição - Câmara Municipal de Paços de Ferreira
Freamunde, Novembro de 2009

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Europa ISO


Já escrevi este texto várias vezes e de diferentes formas. Tem resultado invariavelmente num desabafo, incluído sempre palavras duras e grosseiras, longo, longo demais, desfocado e denunciador de um espírito humilhado, ofendido, em grito de socorro ou de vingança. Lido no fim da escrita corrida e compulsiva, vejo-me exposto, revejo-me num dos meus piores ângulos, não gosto, e enjeito-o.
            Hoje tento mais uma vez. Alinhei como que um guião, em que me vejo a mim próprio a falar – não posso ser longo, devo refrear a ira, manter a compostura, e essencialmente, ser conciso.
            Quero dizer que a responsabilidade pelo estado miserável em que se encontra a maior parte da Europa, é de quem se arroga, há muitos anos, da sua condução. Refiro-me à comissão europeia e ao parlamento europeu. Acresce, que as instituições referidas, são dotadas dos meios que entendem como suficientes, têm sido depositárias da confiança cega dos governantes dos diversos países, têm largos meios de coacção sobre os membros e têm capacidade de determinação sobre os mais ínfimos pormenores que condicionam as decisões das pessoas e das empresas.
            Neste novo mundo, dos oficiais do ministério da economia substituídos por polícias de cara tapada e armados até aos dentes, dos programas de gestão de recursos empresarias (vulgo ERP) certificados, do cruzamento de dados informáticos, do fim do sigilo bancário, das escutas telefónicas generalizadas, dos observatórios para tudo e para nada, dos institutos de estatística a quem o fornecimento de dados é obrigatório, etc., sabemos pelo menos, triste consolo, a quem apontar o dedo.
            Na fúria do controlo absoluto, a standardização, que no velho mundo foi tão construtiva, neste novo mundo europeu, passou a ser um dos instrumentos mais violentos de “escuta” e vigilância, e dos piores meios de controlo policial dos agentes económicos. A certificação da qualidade, nas pequenas e médias empresas, passou a ser, por um lado, uma enorme intrusão nas melhores atenções dos principais recursos humanos, por outro, um esvair insanável de recursos, e por outro ainda, criadora de imensos postos de trabalho não produtivos – os alimentadores do sistema – e de toda uma leva de profissões adstritas ao circo, mas economicamente insustentáveis.
            Já trabalhei numa empresa familiar de administração clássica (autofinanciada), que não subsistiu à concorrência com as outras que se financiaram na banca e absorveram apoios comunitários – o acesso aos apoios comunitários dependia de processos encriptados, incluía o agigantamento dos projectos e sobrevalorização dos equipamentos, incompatíveis com empresas sérias.
            Já trabalhei numa empresa certificada (ISO 9001) que viu o Infarmed retirar-lhe o certificado CE de produção e colocação no mercado de dispositivos médicos e dar-lhe ordem de recolher tudo – tudo – o que estava no mercado (o que provocou a falência fulminante), na mesma semana – mesma semana - em que obteve a renovação da certificação da qualidade (?).
            Já trabalhei numa empresa de comércio de dispositivos médicos, certificada ISO 9001, que não tinha antes de mim, ninguém que soubesse o que era o Infarmed. O Infarmed também não sabia que a empresa existia (ou sempre se comportou como tal).
            Já trabalhei numa empresa de mobiliário com uma implantação oficinal e sem um organograma definido, com uma parte da mercadoria facturada e outra (sem embalagem), com os salários pagos em cheque da empresa mais um envelope, que estava a implantar um sistema ERP completo e em processo de certificação!
Sempre que escrevo a palavra ISO no meu computador, ele corrige-me automaticamente para ISSO. Já poderia ter corrigido esse comportamento sobranceiro e incómodo da máquina, mas mantenho-lhe esse traço de personalidade. Passei a admitir naturalmente, que esta máquina desenvolveu capacidades emergentes de inteligência artificial, não desdenho totalmente dos desígnios do acaso, assim, continuo a permitir-lhe certas liberdades.
           Porque “Internacional Organisation for Standardization” dava origem a diferentes acrónimos nas diferentes línguas, foi decidido usarem a sigla ISO, que deriva do grego “isos” e significa “igual”.
Por estes dias, permite-se a venda de produtos alimentares fora do prazo de validade, a preço mais baixo, e ISSO passa-se na Grécia. Isso, e o mais que está para vir. É por isso que quando digito ISO e o meu computador me corrige para ISSO, eu leio – é isso, é isso – andamos todos a ter de deixar “evidências” do que registamos, de forma imposta, em inumeráveis documentos internos de registo, e o que temos à evidência é esta miséria. A esta Europa premiada, gostava eu de dizer – que descanse em paz!  

JMP

sábado, 20 de outubro de 2012

Saudade


           Saudade, é um mal de que se gosta, e um bem de que se padece.


Palavras de D. Francisco Manuel de Melo (23/11/1608 - 24/08/1666)
Desenho de Alice Rey Colaço (1893 - 1978)


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Alice Rey Colaço



Alice Schmidt Lafourcade Rey Colaço (1893 – 1978)
Pintora, aguarelista, ilustradora
Segunda das quatro filhas de Alexandre Rey Colaço e Alice Schmidt C. Lafourcade
(Jeanne, Alice, Maria Adalgisa e Amélia)

Mais sobre Alice Rey Colaço aqui




Pão para o fogo



Transcrição da legenda:
  Aumentar  o preço do pão é agitar uma sociedade, é activar labaredas. O pão atirado assim para o forno da miséria é o peor dos explosivos

Da Revista ABC, Agosto de 1922 (A imagem com a respectiva legenda aparece sem qualquer texto ou outro enquadramento)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Velhos gritos do Portugal ocupado


L. P.  DE  O.  PINTO  DA  FRANÇA

SONETO

improvisado junto ao tumulo del rei D. Afonso Henriques,
pelo brigadeiro das tropas de Coimbra, no dia
em que Junot dissolveu o corpo do Exército
Português.

                                   A teus pés, fundador da Monarchia,
                            Vai ser a lusa gente desarmada!
                            Hoje rende a traição a forte espada
                            Que jamais se rendeu á valentia.

                            Oh! Rei! Se minha dor, minha agonia,
                            Penetrar pôde sepulcral morada,
                            Arromba a campa, e com a mão mirrada
                            Surge a vingar a affronta  d’este dia.

                            Eu, fiel qual te foi Moniz, teu pagem,
                            Fiel sempre serei: grata esperança
                            Me sopra o fogo d’immortal coragem.

                            E o pranto, que a teus pés minha dor lança,
                            Recebe-o, grande Rei, por vassalagem,
                            Acceita-o em protesto de vingança.

do Cancioneiro de Coimbra (de Afonso Lopes Vieira)

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Maria Madalena


Maria Madalena é uma figura bíblica incontornável. Entre a Maria Madalena mundana e depois arrependida, à santa Maria Madalena que segundo S. João é a primeira a falar com Jesus após a ressurreição, pode não haver qualquer relação. Não há nas escrituras nada que identifique Maria Madalena com a prostituta arrependida que se prostra aos pés do Messias.
  As referências a Maria Madalena na Bíblia são poucas, assim, a personagem adquire um largo grau de liberdade; associado ao facto de ser “apanhada” no centro da história, e sendo mulher, e Maria, e jovem, (…), tornou-se uma imensa fonte de inspiração. Maria Madalena, de certo modo, está viva. Em boa medida, a sua proximidade ao acontecimento da Ressureição imortalizou-a também a ela.
Das representações dessa mulher, que conheço, há duas que me tocaram desde o primeiro contacto. Num caso e noutro, as esculturas possuem de forma imanente o espírito do que representam, e são, para mim, dos melhores exemplares dessa forma de expressão artística.
Uma é loura, outra é morena, ambas têm os cabelos longos, são uma só!



Museu do Louvre - Ala Denon
Atribuída a Gregor Erhart (1470 – 1540)
Datada entre 1515 e 1520   
 
Igreja de Santa Maria – Bragança
Atribuída a Pedro de Mena da Escola de Valhadolid
Séc. XVII



domingo, 14 de outubro de 2012

LEI SECA



(Fotografia do jornal EXPRESSO - ATUAL)

Adicionei hoje à “minha lista de blogues” o LEI SECA, de Pedro Mexia. Não sei porquê só hoje, talvez porque o ambiente natural (para mim) de encontro com o autor, é o Suplemento ACTUAL do jornal EXPRESSO
Pedro Mexia é uma referência no nosso mundo das letras; quem sou eu para falar dele?



segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Situacionismo



      
       Um burro carregado de livros é um doutor
       Um livro carregado de doutores é um burro
       Um doutor carregado de burros é um livro
       Um burro carregado de doutores é um livro
       Um livro carregado de burros é um doutor
       Um doutor carregado de livros é um burro

       Os burros são livros abertos
       Os livros são burros doutores
       Os doutores são burros fechados

  

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Dia Perdido!


Outro dia perdido, na casa da democracia.
Não foi para isto que aquela casa foi feita.
Não foi para espelhar a rua, não foi para inseminar as mentalidades fracas com ideias fortes e falsas. Não foi para exprimir simplesmente as constatações mais óbvias. Não foi para esgrimir indignações como se argumentos fossem.
Pelas palavras, tudo se pode: dignificar o insano e denegrir o inocente, mostrar a mais cristalina sensibilidade do criminoso e a lascívia do casto.
Pelas palavras tudo se pode, mas não será por elas que se semeia o trigo, ou se dessedenta o caído, ou se paga dívidas.
Hoje ouvi um homem a explicar o óbvio, e a seguir, o comentarista de serviço comentou o trecho como brilhante!
As palavras valem o que valem.
As palavras nunca valeram tão pouco.


(Hoje foram apresentadas e votadas na assembleia da república, duas moções de censura ao governo, por iniciativa dos dois partidos, que se mandassem, não haveria democracia)

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Serviço internet


O que se encontra dentro dos livros!

            Fez-me muito bem reencontrar este pequeno documento.
            É uma “Venda a Dinheiro” relativa ao serviço pela internet da BERTRAND, LIVREIROS. Está expressa em escudos, moeda à beira do desaparecimento naquela data – 27 de Abril de 2001. Reporta-se a tempos em que a data de 11 de Setembro ainda não representava nada de especial. É um documento pequeno, de fácil leitura, e apesar de se referir a uma venda feita pela internet é manuscrito.
            Lembra tempos bons em que não se questionava o lugar das pessoas.
            Exprime o necessário e o suficiente.
            Não clama por um arquivamento nem pela guarda ao arquivo e não quer ser mais importante do que o livro a que se refere.


terça-feira, 2 de outubro de 2012

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Sobre as Falésias de Mármore



           
         Nestas lutas, que descambavam em caça ao homem, emboscadas e crimes de fogo posto, os partidos perderam todo o sentido da medida. Cedo se ficou com a impressão de que eles já mal se consideravam entre si como homens, semeando-se a sua linguagem de palavras ordinariamente só aplicadas aos parasitas, que importa a todo o custo destruir e exterminar pelo fogo. Só sabiam reconhecer o crime no campo oposto, pelo que era entre eles honroso o que no adversário era abjecto. Enquanto cada um considerava os mortos dos outros quanto muito dignos de ser enterrados de noite e às escuras, deviam os do seu campo ser envoltos no lençol de púrpura, devia ressoar o eburnum em sua intenção e subir nos ares a águia, levando até aos deuses a imagem viva de heróis e profetas.
         Em boa verdade, nenhum dos grandes cantores, por mais que os aliciassem a peso de ouro, se dispôs a participar em semelhante profanação. Dirigiram-se então aqueles aos harpistas, que tocam nos bailes das romarias, e aos citaristas cegos que, diante dos triclinia dos lupanares, alegram os embriagados clientes com canções sobre a concha de Vénus e sobre o Hércules glutão. Campeões e bardos eram, pois, dignos uns dos outros.
         É bem sabido, no entanto, como o metro é incorruptível. Os fogos da destruição não alcançam as suas colunas e os seus portais invisíveis. Não há vontade que se imponha à harmonia, e não passam assim de vigaristas que se defraudam a si próprios os que presumiam poder comprar oferendas sacrificiais com a dignidade do eburnum. Assistimos apenas à primeira destas exéquias, e tudo se passou exactamente como tínhamos previsto. O mercenário, de quem se exigia estivesse à altura sublime e ígnea matéria do poema, não tardou a gaguejar e a atrapalhar-se. Mas logo recuperou a fluência servindo-se dos iambos abjectos do ódio e da vingança, que sibilavam no pó. Presenciando este espectáculo, víamos a multidão ostentando as túnicas cor de púrpura que se envergam para o eburnum, e também os magistrados e o clero com as vestes talares. Outrora, quando a águia se elevava nos ares, fazia-se silêncio; agora, deu-se uma explosão de júbilo selvagem.
        

Título original: Auf Den Marmorklippen
Autor: Ernst Jünger (1895 - 1998) - Escritor Alemão
Colecção: Escola de Letras - VEGA
Tradução, prefácio e notas: Rafael Gomes Filipe
2ª edição (1998)
Editor: Assírio Bacelar
Capa: Machado Dias