quinta-feira, 24 de maio de 2012

Camilo C. B. atormentado


Da Revista ABC - n.º 83 - Lisboa, 9 de Fevereiro de 1922


Transcrição:
 (pretendi fazer uma transcrição exacta do texto, tal com publicado)


Uma atormentada carta de Camilo

Diante destas dolorosas letras que o mestre da literatura traçou não há escritor que  a possa comentar. É o génio ferido de dôres cruciantes de alma, ancioso do sossêgo que só a morte lhe devia dar, se é que lá longe não seguem ainda a vida desolada dos filhos, as amargas lutas dos netos.

Minha filha
Previ que me darias peores noticias da tua molestia. Estamos em contínua tróca de más novas. Agora, assim será até ao fim. Os dias correrão connosco ao eterno descanso, mas sempre e cada hora mais acerbos. Entramos na agonia moral. Eu vou direito à loucura; mas, por ora, conheço-me no uso pleno da rasão para a ver. Em mim contribue tudo: tu morta, dois filhos perdidos, e eu pobre, estupido, inutil. Eis aqui. Vou talvez embora no domingo, se receber o dinheiro que pedi ao M. Mor. Precizo de aproveitar as minhas tristes horas ao pé de ti, e sentir-te.
A separação só podia fazel-a a campa. Mataste-te, filha, com os teus descuidos. Pensaste que havias de submetter a natureza á tua vontade.
Cancei-me de te pedir em meu nome e dessas creanças que te alimentasses como doente. Nem um dia de treguas deste ás exigencias impreteriveis de uma doença de figado que só pode ser debelada pela dieta e pelos meios da medicina . Agora, ahi está. Nem medico tens que te diga rudemente que morres por que queres.
O que o visconde diz a respeito do Jorge já eu sabia. Não há nada que fazer a esse infeliz. Seide foi a desgraça d’elles, e o Manuel, com o seu funesto exemplo, acabou de os empeçonhar. Oh! Como os nossos nomes hão de ser amaldiçoados por elles, e pelos seus descendentes!
A Amelia escreveu-me hoje em resultado de eu, em uma destas horas de inferno, lhe ter exprobado a sua impostura, o seu egoismo, e as suas rasoens de subordinação ao marido. Quem lhe perguntava se estava subordinada? Como cahíu na consciencia da sua culpa, disse-me que queria vir ver-me com o marido.
Eu disse-lhe que não viesse porque me ia embora. Vinham exacerbar-me.
A’s vezes assaltam-me impetos de ferocidade, que se tivesse inimigos, apunhalava-os.
Sinto a necessidade da familia e da paz que tanta canalha gosa; e vejo-me sem ninguém. Tu és uma moribunda, que me fazes chorar, e cada lagrima que se chora nos meus annos é uma porção de cerebro que se desfaz. A presença dos filhos são dous acusadores mudos que me perguntam: «Que fez o pai destes dois infelises filhos dos seus vicios? Com que coração nos deixou chegar a esta idade sem que saibamos o que sabem os filhos dos mais miseráveis proletários? Por que não nos salvou da miséria , e nos affogou na torrente suja da sua vida?» Que heide eu responder-lhes? Curvar a cabeça deante de Deus que assim o quiz.

2 comentários:

  1. Uma carta atormentada que desnuda a alma de alguém que viveu sob um grande tormento.
    Esse grande Amor- impossível para a época- que o escritor viveu com Ana Plácido, apressou o seu fim.
    Mas eu acho que valeu a pena. É preferível viver um amor impossível, correspondido, do que amar e não ser amado.

    Dizem que os trevos de quatro folhas dão sorte, mas sabe que eu tive um belo vaso com esses trevos e não notei alteração nenhuma em relação à minha sorte? Acabaram por morrer...

    Não sei porquê, mas tenho imensa dificuldade em aceder ao seu blog. Perco a página imensas vezes e é um caso sério para a recuperar. Porque será?

    Um beijo.

    Janita

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    1. Olá. Gosto muito de a ter por cá.
      O Camilo pagou caro a vida boémia que levou. Intriga-me a forma aberta como fala das maleitas que afectam também Ana Plácido, chegando tratá-la por moribunda, aludindo directamente à condenação eminente que pende sobre ela! Nesse aspecto houve uma evolução enorme na forma como comunicamos. Em cartas da Ana Plácido que também tenho trazido até aqui, também se nota a forma crua como enfrenta o sofrimento. Actualmente nunca dizemos a quem está a passar mal, coisas como - olha para ti, coitado, para aí a morrer; foi isso que escolheste...
      Quanto aos trevos de quatro folhas, só dão sorte se forem encontrados por nós, no meio de um prado, e se forem encontrados por acaso!!! E a sorte fica por aí - em ter encontrado o trevo, mais nada.
      O meu blog pode estar muito "pesado" por eu apresentar muitos postais em cada página, e por incluir fotografias muito grandes. Vou reduzir o n.º de postais que se podem ver antes de ter de se aceder a "posts antigos"
      Um beijo

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