Romance Metapsíquico
Pelo Major Sarmento de Beires
***
« … o maravilhoso, chamado ao tribunal da fraca
razão humana, dá de si um encadeamento de absurdos. Nós não sabemos nada.
Vivemos e morremos materialmente. É necessário que apareçam estes meteoros de
deslumbrante clarão, para desviarmos os olhos das mesquinharias que nos
rodeiam, e acreditarmos que há grandes segredos, acima do entendimento do homem
ordinário…»
In Mysterios de Lisbôa, livro IV, de
Camilo Castelo Branco.
***
«A nossa época é horrível porque já não
cremos, - e não cremos ainda».
In
Memorias, I volume, de Raul Brandão.
INTRODUÇÃO
Eclipsadas pela
corrupção da época as aspirações nobres do espírito humano, surgem como ídolos
que a multidão adora, o bezerro de oiro, o bastão de comando, a figura sádica
da volúpia.
O egoísmo avassala
as almas. A felicidade concretiza-se para a maioria num montão de libras, num
lugar de chefe não importa saber de quê, no deboche dum prazer que se compra.
A justiça deixou
de ser uma virgem de olhos vendados, para ser a megera hedionda, sem
escrúpulos, sem noção das proporções, que, vencida pelo temor ou pela coacção,
deixa o crime impune, ou decide a favor do mais poderoso.
Anda a hipocrisia
à solta. A Humanidade perdeu a consciência da sua própria consciência.
E uma rajada de
loucura e ódio revolve tempestuosamente o mar de lama em que a sociedade se
submerge.
No entanto, se,
racionalmente, não devemos admitir o dogma da bondade natural do ser humano,
não devemos também, logicamente, considerar o ser humano como fundamentalmente
mau.
Entre o fervilhar
das paixões e dos interesses, que asfixiam as aspirações de justiça e
fraternidade nos nossos dias, há fachos de luz que bruxuleiam através da
atmosfera densa, há movimentos de opinião sinceros e puros, frementes de
energia, que anseiam por dar combate à degradação dos costumes.
Não é Portugal o
único país em que o mal, em todos os seus aspectos, vem destruindo a harmonia
social.
A degradação é
geral. Por toda a parte se verificam os mesmos pródromos alarmantes: a política
de corrupção, a imprensa vendida, a bacanal infrene, a miséria esquecida, o
negócio ganancioso.
Mas é Portugal o
país onde mais desconsoladoramente se verifica a inércia da massa perante os
factos. A nação portuguesa, velha matrona indiferente, dormita impassível,
cruzados os braços sobre o abdómen, à espera, talvez, dum D. Sebastião
salvador.
Não se ouve um
grito, porque se algum grito soa, a força espúria dos interesses maquiavélicos
afoga-o no silêncio da grande imprensa, nos insultos gratuitos dos porta-vozes
de baixa política, na insinuação pérfida, nas acusações sem base dos ambiciosos
do negócio escuro.
E assim se vai
vivendo…
Entre as causas do
grande desvario, afigura-se-nos terem lugar primacial certas vulgarizações
baratas das doutrinas materialistas.
Não confundamos,
porém, materialismo com racionalismo.
O último impõe-se
nesta época em que, a par da tragédia social, e talvez devido à expansão
daquele materialismo, o cérebro humano tem concebido algumas das mais
formidáveis maravilhas de toda a história.
A própria
definição de racionalismo, - sistema fundado sobre a razão, oposto aos sistemas
que se baseiam na revelação, - deveria bastar para que toda a humanidade
consciente o perfilhasse.
Descartes,
proclamando igual em todo o ser humano, a faculdade de discernir o verdadeiro
do falso, foi um racionalista.
Aliás o
materialismo, esse sistema que reduziu todo o universo à unidade da matéria,
tornando-a consequentemente o fulcro único da nossa actividade, parece-nos ser,
à própria luz do racionalismo, uma negação da inteira realidade.
Como a grande
massa não analisa a argumentação nem aprofunda as teorias, o materialismo
entrou no espírito das multidões sob uma forma simplista, destruindo todos esses
princípios que estão para além da matéria: moral, justiça, mutualidade, amor,
bondade, - transformando a vida num culto à divindade-corpo, numa luta
desesperada pelo bem-estar do organismo, na extorsão, por todos os meios, ao
mundo exterior, dos factores duma vida de conforto e satisfação material.
A vida reduziu-se
afinal a um conjunto de funções orgânicas, e, - heresia suprema, - ousou-se
classificar entre elas, a função pensante.
O pensamento
transformou-se numa secreção cerebral.
Ora, invocando ainda
o racionalismo de Descartes, nós podemos admitir que todos os nossos
conhecimentos são dominados por certos princípios supremos fornecidos pela
razão.
A razão afirma-nos
a sua própria existência fora da matéria.
O pensamento é,
consequentemente, não uma secreção cerebral, mas a manifestação da razão
através do cérebro.
E a razão é um
atributo do espírito.
Assim atingimos a
ponte de ligação entre o racionalismo e o espiritualismo.
Deve notar-se que
não pretendemos negar a legitimidade do materialismo filosófico; mas o
materialismo observa apenas um aspecto da realidade.
O neo-espiritualismo,
objectivado ao máximo nas teorias teosóficas, não desmente a legitimidade das
teorias que o combatem. Considera-as como prismas de visão limitada, que não
abrangem a realidade em toda a sua amplitude. Pela mesma razão, não refuta as
religiões. As religiões enfermam do mesmo mal.
E contudo, nós encontramos entre elas,
no Budismo, o espírito racionalista.
Gautama Buda ensinou que o dever dum pai
consiste em fazer instruir seu filho nas ciências e nas letras. Ensinou também
que não devemos crer nas afirmações dos sábios, dos livros ou das tradições,
desde que não estejam der acordo com a nossa razão.
Há nestes ensinamentos uma evidente
revolta contra a fé arbitrária, contra o dogma.
O espiritualismo racional é uma das
grandes armas de combate à situação social da época presente.
Oxalá não seja esquecida a falência das
seitas religiosas como obstáculo à imoralidade, à injustiça, à perversão, pelos
orientadores do neo-espiritualismo!
Perder-se hão assim os resultados
conseguidos já em todo o mundo, por essa força poderosa que tendia à
espiritualização da Humanidade pela Razão, e que se submergirá agora nas
grosseiras fórmulas dum fideísmo novo.
Para salvar o espiritualismo é
necessário libertá-lo desse falso misticismo e do dogmatismo que o diminuem,
propagá-lo como teoria filosófica moral e lógica, e finalmente aproximá-lo da
multidão no seu aspecto mais acessível e mais afirmativo.
O problema espiritualista tem preocupado,
sob esse aspecto, - o meta psiquismo, - grandes inteligências contemporâneas:
William Crookes, Lombroso, Flammarion, Charles Richet, Schrench Nötzing, René
Sudre, Geley, William James, Bergson, Maeterlinck e tantos outros.
Não há problema mais emocionante que o
problema da nossa vida espiritual, ao qual estão intimamente ligados o problema
da Felicidade Humana, o problema das nossas faculdades psíquicas, o problema da
morte.
Ninguém desconhece os numerosos factos
estranhos que, com incremento sensível no século actual, se estão dando no
mundo, sem que a ciência oficial consiga explicá-los.
Poderíamos citar alguns. A longa
documentação do relatório da «Society for Psychical Researches», ou da obra «La
morte et son mystère» de Camille Flammarion, para não mencionar outros
trabalhos, justifica a nossa abstenção.
O problema metapsíquico, conta hoje, de
resto, quer no seu aspecto teórico e filosófico, uma bibliografia que atinge
alguns milhões de volumes.
Portugal, porém, aparte uma pequena
minoria de curiosos, entre os quais rareiam os espíritos analíticos e do
critério científico, tem-se mantido indiferente à nova ciência.
Há uma incontestável falta de coragem
para afirmar, há uma evidente desorientação nas investigações, e um
desinteresse absoluto pela questão, por parte de quem, com bases cientificas e
categoria intelectual, tinha o dever de se aventurar nestas paragens
misteriosas, onde a fraude, muitas vezes inconsciente, tem surgido ao lado de
factos reais, lançando sobre os últimos uma atmosfera de suspeição e dúvida.
A Cidade do Sol provocará por isso entre
o reduzido número de pessoas alheias ao assunto que se derem à distracção de
nos ler, um gesto de indiferença, um sorriso céptico, talvez um sorriso de
piedade.
Expondo sob esta forma as possibilidades
psíquicas do ser humano, deixando entrever a acção vigorizante e moralizadora
das teorias neo-espiritualistas na sociedade, nós aspirava-mos despertar nos
meios intelectuais e ilustrados a curiosidade pelo assunto, cônscios de que é
necessário promover entre nós, analogamente ao que se está fazendo no
estrangeiro, o estudo e a investigação das leis que regem os fenómenos desta
natureza, a análise crítica desses milhares de factos que continuamente nos
chegam aos ouvidos e que é indispensável coligir, escolher, e rejeitar sempre
que não ofereçam garantias absolutas de autenticidade, - mas reconhecendo
publicamente tudo quanto for, na realidade, incontroverso.
Talvez nos acusem de confusos em certos
pontos. Atribuir-nos hão talvez intenções metafísicas que não tivemos.
O nosso trabalho foi concebido
especialmente para aqueles que já sobre o assunto têm alguns conhecimentos. A
névoa que poderá embaciar a clareza de certas passagens é consequência, em
parte, dessa circunstância.
***
Duas palavras
ainda, sobre o título.
Pouco tempo antes
do romance dar entrada no prelo, informaram-nos da existência duma obra de
Campanela, «La ciudade del Sol».
Não havendo
qualquer ponto de contacto entre o nosso trabalho e o livro espanhol que
desconhecíamos, resolvemos manter o título, com a consciência livre de qualquer
intenção plagiária.
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