quinta-feira, 12 de março de 2015

A CIDADE DO SOL - Livro



Romance Metapsíquico

Pelo Major Sarmento de Beires       


                            ***                         
   
        « … o maravilhoso, chamado ao tribunal da fraca razão humana, dá de si um encadeamento de absurdos. Nós não sabemos nada. Vivemos e morremos materialmente. É necessário que apareçam estes meteoros de deslumbrante clarão, para desviarmos os olhos das mesquinharias que nos rodeiam, e acreditarmos que há grandes segredos, acima do entendimento do homem ordinário…»


        In Mysterios de Lisbôa, livro IV, de Camilo Castelo Branco.

 ***

        «A nossa época é horrível porque já não cremos, - e não cremos ainda».


         In Memorias, I volume, de Raul Brandão.






INTRODUÇÃO

         Eclipsadas pela corrupção da época as aspirações nobres do espírito humano, surgem como ídolos que a multidão adora, o bezerro de oiro, o bastão de comando, a figura sádica da volúpia.
         O egoísmo avassala as almas. A felicidade concretiza-se para a maioria num montão de libras, num lugar de chefe não importa saber de quê, no deboche dum prazer que se compra.
         A justiça deixou de ser uma virgem de olhos vendados, para ser a megera hedionda, sem escrúpulos, sem noção das proporções, que, vencida pelo temor ou pela coacção, deixa o crime impune, ou decide a favor do mais poderoso.
         Anda a hipocrisia à solta. A Humanidade perdeu a consciência da sua própria consciência.
         E uma rajada de loucura e ódio revolve tempestuosamente o mar de lama em que a sociedade se submerge.
         No entanto, se, racionalmente, não devemos admitir o dogma da bondade natural do ser humano, não devemos também, logicamente, considerar o ser humano como fundamentalmente mau.
         Entre o fervilhar das paixões e dos interesses, que asfixiam as aspirações de justiça e fraternidade nos nossos dias, há fachos de luz que bruxuleiam através da atmosfera densa, há movimentos de opinião sinceros e puros, frementes de energia, que anseiam por dar combate à degradação dos costumes.
         Não é Portugal o único país em que o mal, em todos os seus aspectos, vem destruindo a harmonia social.
         A degradação é geral. Por toda a parte se verificam os mesmos pródromos alarmantes: a política de corrupção, a imprensa vendida, a bacanal infrene, a miséria esquecida, o negócio ganancioso.
         Mas é Portugal o país onde mais desconsoladoramente se verifica a inércia da massa perante os factos. A nação portuguesa, velha matrona indiferente, dormita impassível, cruzados os braços sobre o abdómen, à espera, talvez, dum D. Sebastião salvador.
         Não se ouve um grito, porque se algum grito soa, a força espúria dos interesses maquiavélicos afoga-o no silêncio da grande imprensa, nos insultos gratuitos dos porta-vozes de baixa política, na insinuação pérfida, nas acusações sem base dos ambiciosos do negócio escuro.
         E assim se vai vivendo…

         Entre as causas do grande desvario, afigura-se-nos terem lugar primacial certas vulgarizações baratas das doutrinas materialistas.
         Não confundamos, porém, materialismo com racionalismo.
         O último impõe-se nesta época em que, a par da tragédia social, e talvez devido à expansão daquele materialismo, o cérebro humano tem concebido algumas das mais formidáveis maravilhas de toda a história.
         A própria definição de racionalismo, - sistema fundado sobre a razão, oposto aos sistemas que se baseiam na revelação, - deveria bastar para que toda a humanidade consciente o perfilhasse.
         Descartes, proclamando igual em todo o ser humano, a faculdade de discernir o verdadeiro do falso, foi um racionalista.
         Aliás o materialismo, esse sistema que reduziu todo o universo à unidade da matéria, tornando-a consequentemente o fulcro único da nossa actividade, parece-nos ser, à própria luz do racionalismo, uma negação da inteira realidade.
         Como a grande massa não analisa a argumentação nem aprofunda as teorias, o materialismo entrou no espírito das multidões sob uma forma simplista, destruindo todos esses princípios que estão para além da matéria: moral, justiça, mutualidade, amor, bondade, - transformando a vida num culto à divindade-corpo, numa luta desesperada pelo bem-estar do organismo, na extorsão, por todos os meios, ao mundo exterior, dos factores duma vida de conforto e satisfação material.
         A vida reduziu-se afinal a um conjunto de funções orgânicas, e, - heresia suprema, - ousou-se classificar entre elas, a função pensante.
         O pensamento transformou-se numa secreção cerebral.
         Ora, invocando ainda o racionalismo de Descartes, nós podemos admitir que todos os nossos conhecimentos são dominados por certos princípios supremos fornecidos pela razão.
         A razão afirma-nos a sua própria existência fora da matéria.
         O pensamento é, consequentemente, não uma secreção cerebral, mas a manifestação da razão através do cérebro.
         E a razão é um atributo do espírito.
         Assim atingimos a ponte de ligação entre o racionalismo e o espiritualismo.
         Deve notar-se que não pretendemos negar a legitimidade do materialismo filosófico; mas o materialismo observa apenas um aspecto da realidade.
         O neo-espiritualismo, objectivado ao máximo nas teorias teosóficas, não desmente a legitimidade das teorias que o combatem. Considera-as como prismas de visão limitada, que não abrangem a realidade em toda a sua amplitude. Pela mesma razão, não refuta as religiões. As religiões enfermam do mesmo mal.
E contudo, nós encontramos entre elas, no Budismo, o espírito racionalista.
Gautama Buda ensinou que o dever dum pai consiste em fazer instruir seu filho nas ciências e nas letras. Ensinou também que não devemos crer nas afirmações dos sábios, dos livros ou das tradições, desde que não estejam der acordo com a nossa razão.
Há nestes ensinamentos uma evidente revolta contra a fé arbitrária, contra o dogma.
O espiritualismo racional é uma das grandes armas de combate à situação social da época presente.
Oxalá não seja esquecida a falência das seitas religiosas como obstáculo à imoralidade, à injustiça, à perversão, pelos orientadores do neo-espiritualismo!
Perder-se hão assim os resultados conseguidos já em todo o mundo, por essa força poderosa que tendia à espiritualização da Humanidade pela Razão, e que se submergirá agora nas grosseiras fórmulas dum fideísmo novo.
Para salvar o espiritualismo é necessário libertá-lo desse falso misticismo e do dogmatismo que o diminuem, propagá-lo como teoria filosófica moral e lógica, e finalmente aproximá-lo da multidão no seu aspecto mais acessível e mais afirmativo.
O problema espiritualista tem preocupado, sob esse aspecto, - o meta psiquismo, - grandes inteligências contemporâneas: William Crookes, Lombroso, Flammarion, Charles Richet, Schrench Nötzing, René Sudre, Geley, William James, Bergson, Maeterlinck e tantos outros.
Não há problema mais emocionante que o problema da nossa vida espiritual, ao qual estão intimamente ligados o problema da Felicidade Humana, o problema das nossas faculdades psíquicas, o problema da morte.
Ninguém desconhece os numerosos factos estranhos que, com incremento sensível no século actual, se estão dando no mundo, sem que a ciência oficial consiga explicá-los.
Poderíamos citar alguns. A longa documentação do relatório da «Society for Psychical Researches», ou da obra «La morte et son mystère» de Camille Flammarion, para não mencionar outros trabalhos, justifica a nossa abstenção.
O problema metapsíquico, conta hoje, de resto, quer no seu aspecto teórico e filosófico, uma bibliografia que atinge alguns milhões de volumes.
Portugal, porém, aparte uma pequena minoria de curiosos, entre os quais rareiam os espíritos analíticos e do critério científico, tem-se mantido indiferente à nova ciência.
Há uma incontestável falta de coragem para afirmar, há uma evidente desorientação nas investigações, e um desinteresse absoluto pela questão, por parte de quem, com bases cientificas e categoria intelectual, tinha o dever de se aventurar nestas paragens misteriosas, onde a fraude, muitas vezes inconsciente, tem surgido ao lado de factos reais, lançando sobre os últimos uma atmosfera de suspeição e dúvida.

A Cidade do Sol provocará por isso entre o reduzido número de pessoas alheias ao assunto que se derem à distracção de nos ler, um gesto de indiferença, um sorriso céptico, talvez um sorriso de piedade.
Expondo sob esta forma as possibilidades psíquicas do ser humano, deixando entrever a acção vigorizante e moralizadora das teorias neo-espiritualistas na sociedade, nós aspirava-mos despertar nos meios intelectuais e ilustrados a curiosidade pelo assunto, cônscios de que é necessário promover entre nós, analogamente ao que se está fazendo no estrangeiro, o estudo e a investigação das leis que regem os fenómenos desta natureza, a análise crítica desses milhares de factos que continuamente nos chegam aos ouvidos e que é indispensável coligir, escolher, e rejeitar sempre que não ofereçam garantias absolutas de autenticidade, - mas reconhecendo publicamente tudo quanto for, na realidade, incontroverso.
Talvez nos acusem de confusos em certos pontos. Atribuir-nos hão talvez intenções metafísicas que não tivemos.
O nosso trabalho foi concebido especialmente para aqueles que já sobre o assunto têm alguns conhecimentos. A névoa que poderá embaciar a clareza de certas passagens é consequência, em parte, dessa circunstância.

***

         Duas palavras ainda, sobre o título.
         Pouco tempo antes do romance dar entrada no prelo, informaram-nos da existência duma obra de Campanela, «La ciudade del Sol».

         Não havendo qualquer ponto de contacto entre o nosso trabalho e o livro espanhol que desconhecíamos, resolvemos manter o título, com a consciência livre de qualquer intenção plagiária.

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