Compreendo se me disserem que o momento
mais marcante na vida de um papagaio é a longa viagem desde a América do Sul. O
simples homem da rua ao ver a ave palradora presa por uma pata a um curto
cadeado, pensará naturalmente na tormentosa viagem da magnífica criatura,
dentro de um caixote de madeira no fundo do porão escuro de um navio cargueiro.
Nada mais despropositado; são ideias que as pessoas criam nos seus insondáveis
cérebros.
A primeira imagem que retenho depois de
ter saído da casca, e creiam que estou a ser literal, é de um tipo de barba
hirsuta, a fumar um cigarro (?) enrolado à mão. A ideia é vaga mas consigo
distinguir nesta velha memória uma lâmpada incandescente por cima e uma cama de
algodão em rama por baixo; à minha frente o tipo olha para mim e diz, respira
puto, e já tinha nas mãos outro ovo rachado para ajudar a descascar. Tenho
também uma memória auditiva de música tipo hard-rock, em que se canta ao ritmo
das baforadas do que sei hoje ser um charro, inhale…, exhale…, inhale…, exhale...
Mais tarde descobri tratar-se dos Rollins Band. Volto muitas vezes aos Rollins
puxado por “Wrong Man”.
Aqui, onde me encontro, limitado ao
comprimento do guito que me ataram ao tornozelo, dou muitas vezes por mim a
imaginar-me no que seria o meu meio natural e rodeado por um monte de tipos
como eu - demolidor. A simples ideia da
minha imagem repetida, eu aqui e ali, e ali também, todos a fazer o mesmo saracotear
e a deixar cair guano e cascas de sementes choca-me ao ponto de largar um som
daqueles que não estão classificados como linguagem e que eu disfarço com
simulado pigarro. Isso sim, é o que marca de forma indelével a vida de um
papagaio, saber que poderia ser só mais um no meio de ninguém sabe quantos, sem
anilha, sem prato de sementes, sem aulas de expressão vocal, sem um alpendre
nem tão pouco um guito.
O acto da minha abdução, ainda na forma
oval, no meio da infindável selva, pode ter ficado registado. Juntamente com
essas santas criaturas que abduzem ovos, outras há que as acompanham e filmam
tudo. Pelo mesmo processo que os papagaios aparecem no mundo civilizado,
aparecem também filmes que são vendidos não muito longe de onde se vendem
papagaios.
Ainda um dia hei-de encontrar o sentido
disto. Assim que aprender a falar, a falar mesmo, vai ser mais fácil.
Imagem daqui
Gostei do devaneio do papagaio humano. O meu irmão tem um há muitos anos e o danado do bicho é mesmo inteligente. Conhece perfeitamente as pessoas que habitualmente o rodeiam e mostra agressividade só aos estranhos. Farto-me de rir com ele. Só lhe falta mesmo falar (que não é o mesmo que imitar).
ResponderEliminarAbraço!!
Esta do papagaio ocorreu-me ao ler umas coisas que tinha escrito, tendo durante todo o texto a sensação de que aquilo não era meu! Por essa altura, quando estava a ouvir notícias ou espaços de crítica política tinha muitas vezes a sensação de já ter ouvido aquilo, mas dito por outros. O excesso de comunicação pode estar a alterar a forma como percebemos o mundo.
ResponderEliminarAbraço