ÉDIPO A 451º FAHRENHEIT
Já lá vão
uns vinte anos.
O meu pai
só me dava o dinheiro dos transportes para o Liceu. Quando chovia. Porque o
Liceu ficava a três quilómetros de casa e se o tempo estava bom ou assim-assim,
eu ia a pé.
Claro que quando chovia, também ia.. o
dinheiro para o eléctrico tinha outras perspectivas mais úteis de investimento,
na minha maneira de ver as coisas.
Não vou
agora explicar o meu pai. Há coisas mais importantes que quero contar. Mas era
assim. Arrumava-me a pasta, fazia de explicador obrigatório e até de barbeiro.
Tinha uma
mãe que estava casada com ele há mais de vinte anos e portanto já não era
gente, e uma avó.
A avó era
uma mulher das arábias. Aos noventa anos foi a atropelada por um jipe e, após
um mês de hospital, já saía novamente sozinha para onde lhe apetecia.
A casa da
avó ficava a dois quilómetros da casa dos meus pais, a acreditar nas revelações
da agrimensura. Na realidade, vivia noutro mundo.
O Pátio da
Cabrinha ainda existe mas já não é o que era. Nesses tempos ainda não havia a
ponte. Nem a Avenida de Ceuta. Estava separada da cidade por um deserto
limitado por aquele incrível caminho de ferro que atravessa Alcântara.
A casa
ficava num bloco magnífico. Uma série de casas iguais que trepavam por uma
bruta rocha, com filas de celhas de lavar a roupa na base e montes de
escadinhas de cimento a dar acesso.
A minha avó
morava numas águas furtadas, no cimo da rocha. E eu vinha da cidade, passava a
linha de comboio, atravessava o deserto que separava o mundo dela do meu, subia
uma escadaria de cimento – trinta e dois degraus por onde em miúdo caíra aos
rebolões – e chegava à base da rocha habitada depois de contornar poças de água
cinzento-espumaçada das celhas. Subia quatro lanços de madeira carcomida e
chegava lá acima.
As visitas
eram egoístas. A avó enfiava-me sempre dinheiro nas algibeiras quando saía e filhoses
ou bolos caseiros quando chegava. E com a minha avó morava um primo.
Esse primo era o orgulho e a
desconfiança da família. Alto, elegante e simpático. Agente técnico de
electricidade, o que representava o top intelectual da família. E solteiro!
Não mostrava interesse em casar e
tinha livros. Passava o tempo a ler.
E, Deus seja louvado,
emprestava-me livros.
Foi assim que, aos dez anos, me
iniciei na ficção científica.
Descia as escadas com filhós no
estômago, dinheiro nas algibeiras e três ou quatro livros mágicos debaixo do
braço.
Ao chegar ao deserto, começava a
andar e a ler.
Naquela terra de ninguém, não
chocava nada à concepção que tinha do mundo nessa altura, começar a ler um
livro editado por cães que discutiam a hipótese duma anterior civilização
lendária dum ser chamado homem. Ou entrar no século vinte e seis e acompanhar
um magnate que planeia um crime numa sociedade em que os políticos são telepatas.
Só houve um livro que me chocou.
Foi quando travei conhecimento com o bombeiro Montag que andava a queimar
livros proibidos por excesso de imaginação. Com essa é que o Ray Bradbury me
abalou. Uma sociedade onde a lei impunha à população o mesmo que o meu pai a
mim. Onde era proibido Nosperatu, O Pai Natal, a Morte Vermelha, Ambrose Bierce
e Walt Disney.
«451.º Fahrenheit – a temperatura
a que o livro arde e se consome».
A ideia criou-me um choque e uma
angústia só comparável quando, aos seis anos, ouvira na rádio a adaptação do
capuchinho vermelho.
Não me importava nada de viver
num mundo cujos lideres fossem seleccionados por psicotestes dum computador, ou
invadido por homenzinhos verdes a duas dimensões que cuimavam e só queriam
chatear a malta. Mas, com aquela polícia, com aquele cão mecânico que detectava
sentimento de culpa pelo odor da transpiração e que atacava com um agulhão
envenenado, não.
Ambicionava a vinda de todos os
cenários que lia. Governo Mundial com conselheiros psicossociólogos, passeios
em barcos de areia nos canais de Marte a colher os frutos de cristal…
Suportaria a luta pela sobrevivência num mundo pós-Grande-Estoiro, evitando os
lagos fosforescentes à noite e lutando com mantas selvagens. Mas aquela
sociedade não.
Porque aquilo conhecia eu. Viver
num mundo onde não houvesse nenhuma chance de encontrar uma avó a fritar filhós
num sótão, com um primo que me emprestava Sturgeon , Simak ou Frederic Brown…
Cresci.
Quando chegamos á lua, estava eu
em Luanda. Ouvi pela
rádio o maravilhoso «The Eagle has landed» e desatei a rir de contente. Olhei
para o quarto crescente grande, branco e puro tentando vê-los e sentindo a
maravilhosa liberdade de ver o meu mundo estendido para as estrelas.
Apreciei a maravilhosa ironia da
rotina dos passeios Apolo. E piscava o olho às sucessivas aparições no mundo
real dos meus velhos amigos dos livros mágicos da terra de ninguém. O laser, a
engenharia genética, academias de parapsicologia…
Entretanto, a terra de ninguém
macadamizou-se. Os psicólogos (sem a educação anti Aristotélica que Van Vogt
preconizava para a sua raça eleita) analisavam a educação, inventavam a
pedagogia, e descobriam nove factores contra
quatro a favor da história da Branca de Neve.
E os livros mágicos foram
rareando, sem que ninguém os soubesse aproveitar (não ligues, Kubrick, isto não
é contigo). Só certas formas de histórias aos quadradinhos… que começavam a ser
estudadas, analisadas marxisticamente e higienizadas.
E quando dou por mim, estou a
viver num mundo de adultos. Aparentemente ao nível deles. Mas eles não gostam
da imaginação. É subversiva ou reaccionária ou outra coisa qualquer. Mas é
etiquetável seja lá como for. E distribuída racionalmente.
O que é mais discreto mas tão
eficiente como um lança-chamas dos colegas de Montag.
E começo a sentir vontade de me
juntar às bruxas de Shakespeare e aos fantasmas de Bierce e Põe à volta dum
caldeirão fumegante e nauseabundo num mundo só sonhado, num canal de Marte, a
fazer encantamentos com agulhas e bonecos de cera para mandar todos esses
senhores anticépticos para as chamas do inferno.
Mas é cada vez mais difícil
sonhar. E eles já apagaram o inferno.
A. TOMÉ
Artigo da Revista: VISÃO - Para uma nova Banda Desenhada Portuguesa
Número 1, de 1 de Abril de 1975