sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Pesca

Ocorre-me muitas vezes enquanto pesco, que serei surpreendido por um grande peixe couraçado a metais de alta tecnologia. Ouvirei dele provavelmente uma explicação de quão importante para o meu futuro será deixar o reino líquido em paz. Ocorre-me isso e outras coisas, sugeridas pelo reflexo do Sol na superfície espelhada, pelos movimentos das brisas nas águas, pelas bolhas de ar que ascendem dos fundos e pela introspecção deixada com descuido. As correntes, os remoinhos, os sorvedouros e os voos rápidos das libélulas também induzem cogitação vadia.
Certo dia, estava eu a pescar num remoto lugar de um rio selvagem com as botas quase dentro de água, quando reparei que a meus pés tinha um peixinho de aquário com o olhar fixado em mim, a fazer bolhinhas e dando voltinhas acrobáticas que acabavam sempre com o peixinho a mirar-me!
Os meus dois companheiros de pescaria tinham-se afastado tanto que nem os via, assim estava ali só, com um peixinho preto de grandes barbatanas e olhos esbugalhados fixados em mim! Aquilo não vinha da minha imaginação, o peixinho estava ali e era avassalador… não era um peixe tecnológico, era um peixinho alienígena e naquele dia não pesquei mais.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Matilde

Um dia destes voltou a acontecer, cá em casa.
A vida a abandonar um ser, e de quantas maneiras se serve para o deixar!
Às vezes de forma súbita, deixando o corpo com desprezo a estatelar-se no chão como coisa imediatamente sem préstimo. Outras vezes, como desta, muito devagar.
Veio de madrugada. De manhã era já grande o abandono. O frio já instalado nas extremidades ilustrado por matizes de azul e roxo, o sopro vital a escapar-se ficando no seu lugar uma arfar sem ritmo, o resfolegar a espaços incertos mas sempre longos, estertores…  O corpo arqueia, os membros alongam-se, uma expiração … mais um estertor, e outro… pode irromper um pranto á volta mas a dureza instalada nas gargantas é um tampão poderoso. O corpo arqueia e de seguida estica com uma expiração mais longa, descontrai-se lentamente, as pupilas abrem-se e fecham-se, espera-se, a quietude afirma-se.
Despojado de vida o corpo ainda quente é uma coisa medonha.
Vês uma luz?
Vai, segue a luz bichana.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Carl Sagan

Vai longa a insónia na noite chuvosa e encontro abrigo na minha memória e na liberdade dos meus pensamentos.
O som pontilhado da chuva nas árvores e nas grades da sacada, ora sugere uma torrente de fórmulas de trigonometria, como imensas sucessões de números à procura da sua fórmula geral, como logo a seguir traz ao grande quadro negro dos olhos abertos no escuro os números complexos, dízimas infinitas, constantes irracionais, todas as letras do alfabeto grego e um universo inteiro por explicar.
Alonga-se o tempo entre esse divagar e orações aprendidas há muito tempo que repito como mantras, intercalam-se memórias que me assaltam, fotografias, livros inteiros, imagens que nem sei onde as vou buscar, em todo o lado se assoma Deus e isso conforta-me. Viro-me para o outro lado e agora é uma estrela maior que o Sol e a fusão nuclear; um núcleo de hidrogénio que cai para outro e dá hélio e se cair outro dá lítio, com mais um berílio, de momento não me lembro do elemento com número atómico 5, mas sei que a seguir vem o carbono e depois o azoto e depois o oxigénio, assoma Deus – a Física é linda!
Algures num planeta a rachar de actividade vulcânica há um charco cheio de espirogiras – vai aparecer a espécie humana. Já está.
            Dou por mim dentro de uma cena do livro “Contacto” do Carl Sagan. Estou na praia astral onde aporta Ellie após a sua viagem cósmica. Reconheço o areal branco e largo, as palmeiras e as gaivotas. Olho à volta e confirmo que não estou no filme que fizeram com o mesmo título do livro e nele toscamente baseado, é mesmo o livro. Lá está a porta … A prumo, na areia, encontrava-se uma porta. Uma porta de madeira, com almofadas e um puxador de latão. …/… Não era em aspecto nenhum extraordinária. Para a Terra. …/… Surgiu uma figura na praia, a algumas centenas de metros de distância. …Vou ao encontro dele, é um rapazinho de cinco ou seis anos, com uma veste simples de linho cingida por um cordel com nós nas pontas. Conhecendo-me como me conheço, é o Menino Jesus.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Astride

Astride já não está entre nós. No entanto não consigo falar dela no passado; tenho para mim que as pessoas que existiram existem para sempre, assim como as obras de arte, assim como os objectos sagrados, os animais amados e outras coisas.
A Menorah continua a iluminar o seu povo, o farol de Alexandria é hoje mais alto e vê-se a sua lanterna mais longe do que quando estava de pé, Jesus faz nos dias de hoje mais milagres do que quando tínhamos a possibilidade de lhe puxar pelas vestes, as pirâmides do Egipto apesar de esventradas e a esboroarem-se no deserto continuam a levar para o futuro os que as construíram, e mesmo quando já se confundirem com as dunas continuarão a ser pirâmides.
A casa de Astride ainda lá está, os seus vestidos continuam dependurados nos armários, o calor do seu corpo disperso na atmosfera exala de corpos de mulheres que repetem gestos que ela fez, de velas que se acendem em alguns dias do ano e do rosto de rapazes que deixam os olhos bater em mulheres como ela.
Hoje não consigo falar de Astride no passado, não consigo falar dela de forma nenhuma.
           

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Rita

Rita, temos que falar…
Não sei como te hei-de dizer. Talvez já tenhas sentido que algo está diferente, eu…
A culpa é minha, tenho mudado muito mas não posso deixar de me realizar, percebes?
Trouxe-te cá para casa há mais de sete anos e na verdade a maioria deles foram os melhores que já vivi, mas já não é assim.
A casa da tua mãe é um sítio onde sei que te sentes bem, ainda lá tens irmãos, seria melhor…
Há outra.
Aconteceu, pronto…
Os tempos são outros. Já não se mantêm relações só por razões morais.
Eu gosto de ti … mas já não chega!
Linda...
Tenho é que te escovar e ver o que se passa com essa coleira.
Isso é uma pulga?

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O Magalhães


           O Magalhães faz desde há muito tempo uns biscates de trolha cá em casa. É um pouco mais velho que eu, não foi além da escola primária mas não se pode dizer que seja rústico. É todo robusto – fisicamente calejado e intelectualmente sempre coerente.
            Num intervalo para o lanche, interrompida a construção de um banco de pedra sob o carvalho grande e enquanto eu enchia os copos de vinho branco:
            - Você que sempre sabe mais do que eu, porque é que esse computador que dão aos cachopos é Magalhães?
            - Há um deputado socialista muito ligado às novas tecnologias, a estas coisas da introdução dos computadores e da Internet, é o José Magalhães. Já foi ele que fez o Eng.º Guterres depositar uma fé muito grande na Internet, que ia resolver os nossos problemas todos… Agora que o Sócrates se lembrou deste “bodo aos pobres” e como são todos uns peneirentos, lá homenagearam o tal deputado. Ou isso, ou para homenagear o descobridor guerreiro Fernão de Magalhães que quase fez uma volta ao mundo completa para o rei de Espanha. Está a ver? Volta ao mundo, Internet …
            - Tem razão. É tudo uma camada de peneirentos!