domingo, 29 de maio de 2011

O Xico

O Xico tem a vida toda embrulhada. Está magro, a melhor roupa que usa é velha e coçada, gagueja, solta perdigotos, faltam-lhe as palavras, repete-se, está chato.
Está parado á minha frente agarrado ao copo de fino que esvaziou num trago, quer dizer qualquer coisa que não lhe sai ou que lhe peça outro copo, tem o olho vidrado, larga uns “que’s" guturais, até que lhe sai uma frase completa sem engulhos, bem pronunciada:
- Ela disse ao juiz, que me aturou uma vida inteira.
Peço mais um fino para ele, que o meu está mais de meio. Já não me incomoda aquele olhar sem nada que o sustente, estou com tempo. Contenta-me pensar que o ajudo, a cerveja está bem tirada, o Xico já foi um amigo e agora … é inofensivo.
- Uma vida inteira; como se fosse muito! Que já não me aguenta mais e que só quer aquilo a que tem direito…
- Ainda gostas dela, não é?
- … mas só nos temos um ao outro…
Este tipo está em negação. O tempo vai resolver-lhe o problema, ou convencê-lo, e no fim mata-o, em qualquer caso.

Profetas

Onde andará este?
Não constou que alguém tivesse sido preso na altura.


(Tesourinho encontrado entre os recortes de 1996)

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Tempo

Céu pouco nublado, aumentando de nebulosidade a partir
do final da manhã com possibilidade de ocorrência de
aguaceiros e trovoada.
Vento em geral fraco (inferior a 20 km/h) de nordeste,
rodando para noroeste a partir da tarde.


A leste a imagem é medonha.
Um enorme castelo se eleva no céu e ameaça rachar-se num estouro, e desabar. 
Se trouxer granizo estragará boa parte da fruta, os tomateiros com pouco mais de um palmo de altura, folhas e caules tenros, serão vergastados e sucumbirão.
As alfaces plantadas na borda da margem de cebolo serão furadas e partidas.
Valha-nos Santa Barbara!
É para estas alturas que o ditado avisa:
- Guarda os bois e vai para a cama.

domingo, 15 de maio de 2011

Conversa de gajos

- O gajo já não corre, pois não?
- Nunca correu!
- Coisas de gays…
- O jogging, ou a cobertura?
- Tanto é o borboleto como o cobridor.
- Olha o nível…
- Mas que raio, onde foi desenterrar a coisinha do jogging?
- Essa tua expressão “botar ele p’ra correr”…lembrei-me.
- Realmente, há quanto tempo.
- E ninguém comenta!
- O gajo devia ouvir umas bocas e comprou uma passadeira.
- Cor-de-rosa…
- Tanta gajinha boa a apanhar sol, muda de assunto…
- Um par de patins, também dá…
- Faz favor, mais quatro fininhos
- Traga uns tremocinhos
- Aquilo é um gajo ou uma gaja?
- Sei lá, mas a correr assim…
- Péra lá, é ele!
- Vai pelo molhe fora, vai-se deitar a afogar…
- Isso é que era uma sorte!

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Gato fumado



            O inverno deste ano foi duro, cheio de fenómenos extremos e principalmente longo, muito longo.
            Os primeiros dias de algum calor chegados tarde e a medo, vão criando condições para a secagem dos excedentes agrícolas acumulados nos campos e nas hortas e subsequente queima, o que proporciona a redução da quantidade desses materiais e o enriquecimento dos solos. As fogueiras reduzem a cinzas os materiais ainda meio verdes a muito custo e de forma lenta, prolongando-se pela noite dentro num moer lento.
            Nestes dias de queimada, a minha gata Guida vem para casa muito tarde trazida pela fome e pela saudade do dono; traz consigo no longo pêlo o morno da fogueira e um suave cheiro a fumo.


Penamaior, 26 de Abril de 2010


segunda-feira, 9 de maio de 2011

Espera


Não deixei que nascesses sem ver como o fazes.
Esperei de pé, encostado a uma coluna do alpendre
e quando não havia dúvidas que eras um facto consumado
duvidei de ti, revi o escuro que permanece em boa parte do céu,
dou-me por vencido. Tens muita pressa!
Devoras grau a grau o arco em que habitas,
queimas tudo e logo anoiteces; apagas-me os passos.
Lá virás que eu já não veja, não o temo.
Temo sim, que a ver, não venhas tu apressado
e eu me dissolva na noite.

JMP

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Oi, Micas!

- Olha Tônio, bonita luz para fotografia! Vamos fazer uma foto para mandar lá para Portugal.
- É Quinha, bonita luz. Fim de Inverno tem luz assim; muito filtrada, branquinha como você! Micas já não se lembra de mim, vai pensar que arranjou outro Home!
- Você tá enxuto, Tônio. Vou ter que explicar pra Micas como se come aqui, quando vir como ficou a caçula magricela …
- Não mexe agora … carrego no botão e corro pra seu lado … já está.
- Hó, quanta saudade …
- Quer ir você, eu fico com a foto?
- Com a primavera aí, Tônio?


terça-feira, 3 de maio de 2011

Notícias do sobral


     Este ano a queda da folha no montado (ou sobral) ocorreu praticamente toda durante o mês de Abril. Ao longo de Maio cairão as poucas folhas velhas que restam, e com elas toda a floração que brotou com a folha nova.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

E eu?

Aproveito todos os meus tempos livres para restaurar, ordenar e catalogar uma grande quantidade de documentos e objectos dos meus antepassados, acumulados ao longo da vida num quarto escuro.
Como fui capaz de comprar tantos livros que nem li, quando ali naquele quarto tenho a história toda da minha vida que mal conheço.
Se quero saber o que acontecerá aos desenhos que faço, às coisas que escrevo, às esculturas que escavo? – Quero, e sei onde estão as respostas; não tenho tido é a força necessária para olhar para elas. Tudo o que eu preciso de saber tem uma resposta naquele quarto.
Cartas escritas ao longo de vidas, cartas que não chegaram a ser enviadas, fotografias, postais de ocasião, fotografias feitas postais, postais ainda dentro do envelope selado, certidões de casamento, cartões de memória de defuntos, oferecidos à saída de missas de sétimo dia, recados em papel de embrulho, números de telefone estranhamente pequenos, direcções escritas num papel qualquer anotadas durante um telefonema a meio da noite…
Quero saber o que é a vida das pessoas e o que fica delas depois? Está tudo ali. Posso não olhar para lá, preferir ver cinema francês, mas não ando ao engano
Se quero saber se há Deus? – Quero.
Se a resposta também está naquele quarto? – Claro! Só não sei é quão atrás conseguirei ir na minha árvore genealógica.
Ocorre-me:
- E vós? Quem dizeis vós que eu sou?
Olho para um porta-retratos com a fotografia do meu bisavô José da Silva Moura, e da minha própria imagem reflectida, ouço: - E tu? Quem dizes tu que és?